Cotidiano

Cerca de 800 crianças e adolescentes entraram sozinhos no Brasil

O adolescente venezuelano Luiz, de 17 anos, demorou cinco dias caminhando e pegando carona na estrada nos mais de 1000 quilômetros que ligam Caracas até Boa Vista, capital de Roraima.

Ele contou que na Venezuela vivia sozinho e não conhece os pais e que trabalhou com construção, com mecânica, levando bagagens na rodoviária e que hoje vive na rua. “Lá na Venezuela todo mundo falava que no Brasil a gente tinha oportunidade, tinha emprego. Então eu vim embora. Estou tentando abrigo, mas eles priorizam as famílias, e eu não tenho família. Moro na rua, mas fiz amigos e agora busco trabalho. É difícil, mas tenho esperança”.

Oficialmente, mais de 570 crianças e adolescente foram cadastradas pela Vara da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de Roraima. “Nenhuma estava completamente só. Sempre há alguém por perto que os representa” disse a chefe de proteção da Vara da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de Roraima, Lorraine Costa. Ela afirma que falta serviço e pessoal suficiente no estado para atender a todos. Ela disse que o acolhimento de crianças e adolescentes sem família é realizado, mas que “o abrigo não é uma prisão”. Também informou que os jovens têm acesso à educação.

“A Operação Acolhida separa em quatro abrigos conforme os perfis, para evitar conflitos. Em um tem adolescentes masculinos, em outro, meninas grávidas. Mas o portão está aberto, pois é um abrigo. Com regras, mas ninguém proíbe de sair”, justifica. “Temos visitas semanais na rodoviária feitas pela divisão, de forma solidária, para cadastrar famílias e adolescentes vulneráveis na fila de acolhimento, e, nesse caso, acionamos a rede de proteção e abrigo.”

Do total de crianças sem responsáveis diretos, 19 estão na operação acolhida, 10 estão no abrigo São Vicente, dois no abrigo Nova Canaa, dois no abrigo Santa Tereza, 01 no abrigo BV8 e quatro no abrigo Tancredo Neves.

A reportagem procurou outras crianças e adolescentes em mais cinco abrigos temporários e informais espalhados pela cidade e até em prédios públicos abandonados que hoje estão ocupados por venezuelanos. Em um deles, o coordenador do local informou que um grupo de crianças e adolescente chegou a buscar abrigo, mas eles mandaram embora. “Não dava para ficarem aqui ‘sem madre nem padre’. A fiscalização vem e estaríamos em perigo. Então mandamos eles embora, de volta para a rodoviária”, conta Nizan Abrantes, um venezuelano de pouco mais de 40 anos que coordena o abrigo para mais de 600 pessoas em um prédio público abandonado.

A conselheira Tutelar da Capital Boa Vista, Andreza Ferreira contou que esses menores que entram sozinhos no país, são levadas para quatro abrigos da Operação Acolhida na capital Boa Vista, mas ficam sem nenhum tipo de atendimento mais especializado. Segundo ela, esse número de abandonados pode chegar a 800.

“Tem muito menino na rua, nesses lares temporárias, com famílias que o conheceram aqui e acolheram, em abrigos não oficiais, que são órgãos públicos abandonados que foram ocupados por migrantes e têm os abrigos que chamamos de ‘fantasmas’, que são casas e vilas onde se aglomeram várias famílias e pessoas em um local só e ali tem adolescente que não é nada de nada de ninguém e está sozinho no país.”

A conselheira explicou que essas crianças são abrigadas de forma temporária e ficam de stand by nos abrigos. “Existem várias sugestões, projetos, acompanhamentos, para ver os rumos que podemos dar a esses meninos, principalmente em relação à educação e a assistência de ter um cuidado maior, um cuidador. Tudo precisa ser bem trabalhado e aprovado pela justiça local e demanda tempo. A saída mais imediata serão essas duas casas lar, mas que vão dar espaço apenas para 20 crianças”.

Estado e prefeitura dizem  que não estão omissos

Um plano de contingencia foi articulado pelo governo de Roraima de forma emergencial para atender os menores desabrigados após decisão judicial que interditou os abrigos por conta da superlotação.

Ainda este mês de dezembro, está prevista a inauguração de uma casa lar no Município de Pacaraima e outra em Boa Vista, com capacidade para 10 adolescentes por unidade. 

“O Estado está buscando, junto ao Ministério da Cidadania, apoio técnico para construção de planos emergências, com possibilidade de capacitação de recursos financeiros, para aumentar o número de unidades de acolhimento. Importante destacar que o Estado não está omisso no acolhimento, mas sim se organizando para que tenha capacidade de expandir os serviços”, disse o governo de Roraima, em nota.

A Prefeitura de Boa Vista informou que tem articulado com as outras esferas e até as agências humanitárias uma maneira de contribuir para um acolhimento digno das crianças. Atualmente, 23 crianças estão no abrigo municipal, sendo 6 brasileiras – filhas de mães venezuelanas, 1 criança venezuelana e 1 haitiana.

“A gestão municipal entende que este assunto é complexo e jamais pode ser tratado como responsabilidade municipal. Tendo em vista que se trata de uma crise humanitária internacional com reflexo em toda a Capital e nos serviços prestados a brasileiros e venezuelanos. A Prefeitura de Boa Vista ressalta que se eles entram sozinhos na fronteira é competência do Governo Federal ampliar a fiscalização nesta área, da Operação Acolhida criar uma estratégia de recebimento, do município de Pacaraima e do Governo do Estado para evitar essa irregularidade, tudo sob o aspecto humanitário”.

Casas de acolhimento para crianças venezuelanas serão inauguradas 

Duas novas casas de acolhimento serão inauguradas em Roraima na segunda quinzena de dezembro para receber crianças e adolescentes venezuelanos que chegam ao Brasil desacompanhados de pais e responsáveis, informou o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) em nota publicada nesta segunda-feira (9) no site naçõesunidas.org.

A iniciativa é fruto de uma parceria entre UNICEF, governo de Roraima e Ministério da Cidadania, no contexto da Operação Acolhida. Também teve apoio para mobiliário da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) e da Organização Internacional para as Migrações (OIM).

“Como resposta imediata, uma Casa de Passagem, em Pacaraima, e uma Casa Lar, em Boa Vista, serão inauguradas na segunda quinzena de dezembro. As unidades representam a ampliação dos equipamentos especializados para acolhimento de crianças e adolescentes, focadas em modalidades alternativas à institucionalização, oferecendo um ambiente próximo de uma rotina familiar”, disse o UNICEF em nota.

Todas as casas contarão com uma equipe técnica de psicólogos e assistentes sociais que trabalharão no acompanhamento e busca ativa de familiares de cada criança e adolescente.

“Além de a garantia de regularização migratória, uma das possíveis medidas de proteção é o acolhimento de crianças e adolescentes em ambiente adequado, assim como preconiza a legislação brasileira. Esse acolhimento deve ser temporário, enquanto é realizada a busca de seus familiares (incluindo família extensa) para processo de reunificação”, afirmou o UNICEF.

A coordenação das casas ficará a cargo da organização Aldeias Infantis SOS, com experiência internacional em modalidades alternativas de cuidado, com atuação em outros países no contexto de resposta ao fluxo migratório venezuelano.