
A pandemia de Covid-19 transformou os hospitais em cenários de guerra. Profissionais de saúde enfrentaram jornadas exaustivas, decisões difíceis e a dor de ver pacientes partirem sem a presença da família. Entre eles, a enfermeira Bruna Vaz, atualmente com 28 anos, testemunhou a combustão do sistema de saúde. Ela também viu as consequências físicas e emocionais de estar na linha de frente.
Bruna se formou em Enfermagem em dezembro de 2019, e a sua primeira experiência profissional foi a pandemia. Ela atuou no Hospital de Campanha, montado em lona pela Operação Acolhida, desde a inauguração em junho de 2020 até o encerramento das atividades, em dezembro do mesmo ano.
“Saí [da faculdade] com a expectativa [alta], pensado que ia trabalhar promovendo saúde, cuidando das pessoas, e caí de paraquedas numa pandemia. Lá, a gente viu muitas pessoas, infelizmente, morrerem”, relembrou. Segundo ela, isso “foi desesperador, porque como a gente foi atuar na saúde de campanha, não tinha muito conhecimento. Então, a gente usava muitos equipamentos de proteção individual [EPI]. Passávamos por uma desinfecção antes de ir para casa, depois tomava banho e lavava roupa individualmente”.
A enfermeira morava com a avó de 60 anos na época. Por ambas estarem nos grupos de risco, Bruna saiu de casa, se isolou em um apartamento e iniciou uma rotina de trabalho noturna no HC. Ela atuava na triagem e recebia os pacientes com sintomas graves do coronavírus, que algumas vezes não saíam pela mesma porta.
“Eu tive muito medo de contaminar meus familiares, principalmente a minha avó, minha saudade diária. Medo de levar a doença para casa. Foi muito difícil esse período para mim. Trabalhava de noite no hospital de campanha, recebia os pacientes. E, para mim, o que me chocou mais, há marcas até hoje, era: o paciente entrar conversando comigo e, algumas horas depois, ter descoberto que ele tinha ido à óbito. Eu ficava, mas como assim?”
Além dos desafios físicos, a perda de colegas tornou a experiência ainda mais dolorosa. Bruna relatou sentir a perda de um profissional que trabalhou lado a lado e depois o viu como paciente. “A gente perdeu muitos colegas de profissão. Enfermeiros, técnicos de enfermagem, auxiliares de enfermagem, médicos, que estavam ali atuando na linha de frente. Eles se colocaram à disposição da população, honrando com a sua profissão, fazendo o seu juramento na graduação”, destacou a enfermeira.
A sobrecarga e o desgaste emocional
Durante os meses em que atuou na unidade provisória, Bruna não pegou Covid-19. No entanto, ela relata que ao encerrar as atividades no hospital precisou de atendimento psicológico. As cenas que viu por cinco meses marcaram sua memória.
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“Quando virou o ano, em 2021, eu comecei a ficar traumatizada com algumas coisas. Os danos da perda ficaram mais intensos: ver tantas pessoas morrerem e não ter sido preparada na faculdade para lidar com o óbito… Eu tinha aquela cabeça de ‘vou transformar a vida das pessoas por meio da saúde’ e eu me vi em uma pandemia em que só via mortes e mais mortes, e cada vez os números dos óbitos subindo. Muitas vezes eram pessoas conhecidas, pessoas próximas a gente. Foi muito difícil o ano de 2020”.
O Hospital de Campanha, nos cinco meses de funcionamento, registrou aproximadamente 1,3 mil pacientes internados e que comemoraram a vitória contra a Covid-19 ao passar pelo Jardim do Abraço – espaço que ficou conhecido pelas histórias de superação. Além disso, atuaram cerca de 800 colaboradores, entre médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos, assistentes sociais, vigilantes, técnicos e faxineiros.
Uma dose de esperança: a chegada da vacina
Os casos de Covid-19 em Roraima amenizaram na transição de 2020 para 2021. No Brasil, com a complexidade da pandemia e um registro de cerca de 200 mil pessoas mortes em decorrência do vírus, as vacinas autorizadas pela Anvisa (Agência Nacional de de Vigilância Sanitária) foram anunciadas para imunização dos grupos prioritários: povos indígenas vivendo em terras indígenas; trabalhadores de saúde; e pessoas de 80 anos ou mais.
Quatro vacinas contra a doença receberam autorização na época: CoronaVac, vacina do Butantan produzida em parceria com a biofarmacêutica chinesa Sinovac, e os imunizantes das empresas AstraZeneca, Pfizer e Janssen.
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“Eu estava trabalhando no interior de Roraima, em Amajari e fiquei à frente da campanha de vacinação do Covid-19. Em 20 de janeiro de 2021 a gente recebeu as primeiras doses de vacinação no município. Nesse dia, a gente chorou, eu me emocionei, porque para mim foi uma dose de esperança. Em memória a tantas pessoas que infelizmente foram à óbito e esperança para as pessoas que se encaixavam nos grupos prioritários, incluindo os profissionais de saúde que ainda estavam ali na linha de frente”, contou Bruna que atuou na distribuição das vacinas aos idosos.
A chegada da vacina representou um marco de alívio, não só para Bruna, mas para os profissionais da saúde e para a população. Hoje, a enfermeira reflete sobre a resiliência e as marcas que a pandemia deixou, tanto no sistema de saúde quanto nas vidas dos profissionais da linha de frente. “A população nos reconheceu, os colegas também, mas o que ainda falta é a valorização profissional, especialmente em termos salariais. A sobrecarga e o desgaste continuam sendo uma realidade”, afirmou.