O cheiro da fumaça era forte na manhã de ontem, 27, na região do Bom Intento, zona rural de Boa Vista.
O motivo foi um conflito entre a Guarda Municipal, junto com membros da Empresa de Desenvolvimento Urbano e Habitacional (Emhur) e produtores da agricultura familiar em região a cerca de 7 quilômetros do Centro Socioeducativo (CSE), durante uma reintegração de posse.
Segundo informações obtidas pela Folha, a Guarda Municipal foi cumprir a reintegração de posse da terra, que seria particular. Os agricultores afirmam que o terreno é do Governo do Estado, cedido para as mais de 1.500 pessoas, incluindo crianças, para a prática da agricultura familiar. Além disso, a presidente da Associação de Agricultores Familiares da região, conhecida como dona Deusa, foi levada para dentro da viatura da Guarda, após tentar mostrar documentos da propriedade.
“Eles chegaram e a dona Deusa foi pegar os papéis. Entretanto, os policiais não deixaram e simplesmente disseram que ela seria conduzida, sem mais nem menos. Ela foi algemada e levada. Disse ela que voltaria para cá depois, pois não teria como eles a segurarem na delegacia por muito tempo”, explicou George Luis, um dos produtores que vive no terreno.
As barracas e redes dos produtores foram queimadas, toda a comida que eles tinham foi jogada fora e um carro foi apedrejado. A produtora Josilene de Souza, dona do veículo, contou que irá registrar um Boletim de Ocorrência contra a Guarda Municipal e que, apesar de tudo, os produtores ainda permanecerão na terra disputada.
“Discutimos por um tempo se sairíamos daqui ou ficaríamos. A princípio, eu queria tirar meu carro de lá, pois vai que eles toquem fogo nele também. Porém parece haver um consenso de que todos nós iremos ficar e defender a terra que é nossa por direito. Temos muito medo do que pode acontecer, mas já sofremos tanto na mão da Guarda Municipal que não aceitaremos mais isso, pois finalmente temos a documentação do Estado para provar que esse é nosso lugar”, afirmou.
Segundo um dos produtores, Alex Serafino, o terreno particular fica próximo ao do Governo. Entretanto, ele teria usado papéis falsos para apontar como também sendo dele. Por causa disso, em 2017, os agricultores foram forçados a sair da propriedade e retornaram no início dessa semana, após confirmação do Governo do Estado de que o terreno é de fato da sua esfera.
“Ele mandou colocar uma cerca envolta do terreno do Estado, mesmo sabendo que o dele é ao lado. O filho dele esteve aqui hoje e mostrou algumas documentações alegando que o terreno é dele. Mas sabemos que os papéis são falsos, e nos garantiram que estava até no Diário Oficial do Estado proclamando aquela terra como sendo para nosso uso. Essa não é a primeira vez que essa hostilidade acontece, já tivemos situação de sermos espancados, recebermos gás de pimenta na cara, tudo na base da ignorância”, contou.
De acordo com os produtores, essa disputa de terra existe desde 2013, ano em que eles começaram a ‘tentar’ morar na região. De lá para cá, diversos episódios de represálias por parte da Guarda Municipal são descritos por eles, com muitos resultando em expulsão por meses. Entre eles, um dos mais chocantes foi a agressão sofrida pelo produtor Rojean Alencar na expulsão ocorrida em 2017. Ele foi levado para o hospital e até hoje possui sequelas em seu sistema nervoso.
“A paulada foi certeira na minha nuca. Eu tive certeza que iria morrer. Mas sobrevivi. Só que não consigo mexer algumas partes do rosto e ainda sinto algumas dores. Tomo remédios todos os dias para que eu não tenha mais danos”, relatou.
No momento em que a Guarda Municipal apareceu, apenas uma pequena parcela das mais de mil pessoas que vivem por lá estavam presentes.
“Quando sofremos esses ataques, quem nos ajuda são as pessoas que vão mais para a cidade, que passam o dia lá e só voltam aqui para dormir. Todos nós nos ajudamos como podemos. Eles tiram de nós tudo que temos e não temos, mas ainda assim continuamos lutando. Na política, existe muita gente que traz pistoleiro para conseguir o que quer a qualquer custo, mas nós garantimos o que é nosso e assim continuaremos”, concluiu.
PREFEITURA – A reportagem da Folha procurou a Prefeitura de Boa Vista para que comentasse a ação dos guardas municipais, mas não obteve retorno até o fechamento desta matéria.
Iteraima confirma que terra é destinada para agricultura familiar
Para fins de confirmação quanto ao real dono da propriedade, o Instituto de Terras e Colonização de Roraima (Iteraima) informou, por nota, que a área é do Estado de Roraima desde 2009, com o repasse da gleba Murupu da União para o Estado.
“A área foi declarada como de Interesse Social para fins de Desenvolvimento de Projeto de Colonização pelo Estado de Roraima, conforme o Decreto nº 25.957-E, publicado no DOE nº 3323 de 21 de setembro de 2018”, informou o Instituto.
Sobre a alegação de posse de um proprietário particular, o Iteraima afirmou que analisou os documentos e informou que eles foram cancelados, por terem sido identificadas irregularidades na cadeia possessória apresentada.
Sobre a situação de ontem, o Instituto afirmou que irá adotar as providências necessárias, levando em conta a Lei nº 976/14, que trata da regularização de áreas rurais de propriedade do Estado, visando o cumprimento da função social das terras públicas, qual seja promover a geração de renda e o desenvolvimento econômico por meio da produção. (P.B)