Na visão dos Wai-Wai (lê-se “uaiuai”), povos originários das Guianas que habitam terras indígenas em Roraima, quando o parente morre longe da família ou de sua aldeia, precisa ser enterrado na aldeia onde nasceu e viveu. Do contrário, não terá sossego no mundo espiritual.
“É muito triste e não é bom pra gente o parente ser enterrado longe da sua aldeia, o sofrimento é longo. Todo Wai-Wai parente que morre, tem de ser enterrado na aldeia, dentro da casa dele, do morto. Não pode ser excluído”, explica Miguel Wepaxi Wai-Wai, 34 anos, da comunidade Samaúma, presidente da Associação dos Povos Indígenas Wai-Wai (APIW) no Estado.
A pandemia de covid-19 criou um conflito entre as regras sanitárias e os ritos fúnebres deste e de outros povos de Roraima, que concentra a maior população indígena do País. O plano de contingência contra o coronavírus do governo estadual proíbe rituais e sepultamentos tradicionais indígenas.
O documento obriga o enterro em cemitérios urbanos em caso de mortes nas cidades e só permite a exumação e traslado dos corpos, conforme peculiaridades dos rituais fúnebres de cada grupo, após a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretar o fim da pandemia. Segundo o plano, o custo da operação é dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), responsáveis pela etnia. Esses órgãos vinculados à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde.
Fernando Makari Wai-Wai, de 58 anos, e Sergio Xehxamo Wai-Wai, de 80, foram enterrados no cemitério de Boa Vista, sem consulta às famílias, em julho de 2020. Os tuxauas (caciques) da comunidade Xaary, Zacarias Zakahia Wai-Wai e Valdeci Noro Wai-Wai, entraram com ação e o juiz Helder Girão Barreto concedeu a exumação, ao considerar o ritual fúnebre Wai-Wai compatível com as regras sanitárias.
Até agora não houve o traslado dos restos mortais para a comunidade, no município de São João do Baliza, a 313 km da capital. “Ainda não foi possível, devido ao trâmite processual e até mesmo a situação da pandemia”, lamenta a advogada dos tuxauas na ação, Maria Luzia Vaz da Costa.
A Hutukara Associação Yanomami e o Conselho Distrital de Saúde Indígena (Considi Yanomami) pediram e o Ministério Público Federal (MPF) em Roraima abriu inquérito civil para apurar desrespeito às práticas culturais de cada povo e eventuais danos morais. O procurador da República em Boa Vista Alisson Marugal emitiu recomendações aos órgãos responsáveis, nas quais pede a exumação e defende a prática ritualística fúnebre indígena como direito constitucional e elemento central de sua cosmologia.
“Tolher tais povos de tais atos tradicionais é uma maneira de violentá-los e de privá-los de sua forma de se despedir de seus entes queridos, configurando um verdadeiro ato assimilacionista, o que é vedado e rechaçado pela Constituição da República e pelas normas internacionais de Direitos Humanos”, afirma o procurador.
Na mais recente recomendação ministerial, de 17 de dezembro, ele sustenta que o plano de contingência do governo estadual fere direito fundamental dos índios e suas comunidades. A orientação tem como base pareceres técnicos favoráveis à exumação e translado do Departamento de Vigilância Sanitária da Secretaria Municipal de Saúde de Boa Vista e Instituto Médico Legal da Polícia Civil de Roraima.
O texto não traz uma lista de quantos corpos devem passar pelo processo, mas há vários relatos conhecidos de corpos a serem resgatados, também entre os Yanomamis. Uma delas é de um estudante de 15 anos, morto e enterrado na capital em abril de 2020. Há também quatro bebês, dois deles do subgrupo Sanöma, que também morreram entre abril e maio daquele ano, em Boa Vista, e as famílias jamais receberam os corpos.
“Já se passaram dois anos e o povo Yanomami ainda sente grande choque cultural por seus filhos, seus netos, que morreram de covid nos hospitais e nunca fez o ritual fúnebre”, reclama o presidente do Considi Yanomami (Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami), Júnior Hekurari Yanomami, 34 anos, morador da comunidade Kori Yauopë.
“As famílias precisam se livrar desse sofrimento espiritual, as esposas, as mães, vivem uma estranheza, porque irmãos, filhos, maridos, morreram e não podem fazer o ritual. A gente espera que os DSEIs façam um processo emergencial para isso”, pondera.
A tradição fúnebre entre os Yanomamis não sepulta os corpos. Fazem parte do ritual a exposição do cadáver e a cremação dos ossos. “Alguns subgrupos [dos Yanomamis] fazem a ingestão das cinzas [em mingau], em outros subgrupos, a cinza fica depositada na casa da pessoa, da família, da esposa, por um tempo, um ano, cinco anos ou mais, depende da idade [do morto]”, explica Hekurari.
A Secretaria do Trabalho e Bem-Estar Social do Estado de Roraima informou, em nota enviada ao Estadão, que o assunto “é competência exclusiva do Governo Federal” por se referir à população indígena. “E por se tratar de restos mortais, as exumações só podem ser realizadas mediante pedido judicial”, completa a nota. Na ação da Comunidade Wai-Wai, a Justiça Federal excluiu a Fundação Nacional do Índio (Funai) do processo ao considerar que não há responsabilidade do órgão no caso.
Coordenador do DSEI do Leste de Roraima há 11 meses, Márcio Sidney Sousa Cavalcante afirma que o distrito não tem recursos para a operação. “Pedi mais 20 dias de prazo ao MPF e encaminhei a recomendação para a Sesai em Brasília. Aguardo orientação sobre acatar ou não, pois, hoje, não temos condições legais nem orçamentárias.”
Em nota, o Ministério da Saúde, por meio da Secretaria disse que o pedido “está passando por uma cautelosa análise feita por técnicos e especialistas da SESAI, sobre as possíveis consequências de tal atividade, levando-se em consideração as premissas da Política Nacional de Atenção à Saúde Indígena dos Povos Indígenas”.
Miguel Wai-Wai afirma que as lideranças lutaram para levar os corpos no início da pandemia, mas na última reunião no ano passado, demonstraram desânimo. “Disseram que já passou muito tempo e, se não tiver mesmo condição, pode deixar lá mesmo”. Mas caso haja autorização para a exumação, será preciso dialogar com as famílias dos mortos. “Essa informação não chegou para nós, nem na associação, nem no grupo das lideranças. Quando chegar, a gente vai conversar com as famílias, saber se a família vai aceitar receber o parente morto”.
Fonte: O Estado de São Paulo