Cotidiano

Índios e antropólogos criticam projeto que criminaliza infanticídio no Brasil

A Câmara dos Deputados aprovou, no final do mês passado, projeto que proíbe a prática do infanticídio nas comunidades indígenas, assim como outras práticas nocivas a crianças de várias etnias do país. Indígenas de Roraima e antropólogos dizem que a proposta tem conteúdo arbitrário e desrespeitoso. O projeto segue para o Senado, que deve discutir o assunto nas próximas semanas.

O texto aprovado pelos parlamentares altera o Estatuto do Índio, destacando que “cabe ao Estado agir para proteger crianças, adolescentes, mulheres, deficientes e idosos de práticas que atentem contra a vida, a saúde e a integridade físico-psíquica dos indígenas”, considerando a reformulação da lei.

O assunto rendeu muitas discussões e preocupações entre os povos indígenas, especialmente em meio aos Yanomami, que ainda não se reuniram para tratar do assunto. “Estamos falando de cultura, não se pode chegar e proibir. Os deputados podem aprovar, mas é complicado proibir.

Estamos conversando sobre como fazer com o povo Yanomami, porque nosso território é grande, várias etnias falam a língua, mas acredito que todas as organizações em Boa Vista vão se reunir para conversar e em seguida comunicar as lideranças das etnias”, disse o coordenador de comunicação da Associação Yanomami Hutukara, Morsaniel Yanomami.

O texto prevê que o Estado deve desenvolver projetos que visem a defesa de recém-nascidos, crianças rejeitadas pelos genitores e mulheres em caso de gestação múltipla. Caberá ao órgão do Estado fazer o cadastro das gestantes para acompanhamento e garantia de que a criança nascerá sem risco de sofrer violência.

A Folha procurou a Coordenação do Distrito Sanitário Indígena Yanomami (Dsei Yanomami) para comentar sobre a aprovação do projeto de lei, mas a entidade informou que não poderia se pronunciar e sugeriu contato com a Secretaria de Saúde do Índio (Sesai), em Brasília (DF).

Um dos parágrafos do texto reforça que os cidadãos são obrigados a informar sobre situações de risco detectadas em comunidades indígenas, podendo ser responsabilizados. “As autoridades serão igualmente responsabilizadas, na forma das leis vigentes, quando não adotarem, de maneira imediata, as medidas cabíveis para a proteção e defesa das crianças, adolescentes, mulheres, pessoas com deficiência e idosos indígenas em situação de risco”, afirma.

De acordo com o antropólogo Alexandro Namem, o projeto de lei é desfavorável aos povos indígenas, além de ser “arbitrário” e “desrespeitoso” em todos os sentidos. “É uma interferência da nossa civilização na vida dessas outras civilizações que são as populações indígenas. Isso sempre tem que ser visto no plural mesmo. As pessoas aqui, no Brasil, foram educadas para pensar no índio genérico, quando na realidade são muitas civilizações, cada qual com seu costume. Nem todas praticam o infanticídio e algumas praticam, como a nossa civilização, inclusive por meio dos abortos ilegais”, frisou.

Ele disse que não existem muitos estudos a respeito do infanticídio, entretanto, constata que é próprio da história humana, que em todos os tempos e em todos os lugares produziu mortes. “Yanomami é um grupo formado por uma diversidade de etnias aparentadas entre si e existem grupos que nem tem contato conosco. Então, é muito temerário falar sobre infanticídio indígena na medida em que o Brasil é pluriétnico e contempla populações que ainda nem foram contatadas por nós”, destacou o antropólogo.

“A cobiça em relação ao território Yanomami é maior do que qualquer outra cobiça. O que não temos é o direito de impor a essas populações as nossas próprias regras, tendo em vista que elas sempre estão reivindicando autodeterminação”, enfatizou o especialista em etnologia indígena.

O projeto foi batizado de “Lei Muwaji”, em homenagem a uma mãe indígena que se revoltou contra a tradição de sua tribo e salvou a vida da filha, que seria morta por ter nascido com deficiência física. (J.B)