Quilômetro 285 da BR-319. Era 6h de uma quarta-feira. O mato-grossense Alex Dalazen, de 35 anos, foi encontrado sozinho, atolado com o seu Fiat Mobi 2018. Era o segundo dia de viagem dele, de Manaus para Porto Velho (RO). O que motivava o servidor público de Apuí (AM) a continuar pelo arriscado Trecho do Meio – 405km de terra, lama e buracos, onde veículos conseguem trafegar em média 30km por hora – era a busca por respostas para saber a gravidade do tumor de 4,7 cm alojado na “parede” esquerda de seu crânio.
Fato é que o pai de três filhos (gêmeos de 17 anos e um de 15) e padrasto de um enteado de 20 já perdeu a audição esquerda e tem um princípio de paralisia facial do mesmo lado.
A suspensão do carro do Alex ficou presa ao barro alto deixado pelas rodas dos caminhões e ônibus que passaram pelo meio da pista. Nem o empurrão de três solidários motoristas, tampouco a tentativa de Alex em manobrar de ré, conseguiram tirar o veículo de lá. A fita emprestada por caminhoneiros que aguardavam a saída do veículo para passar em direção a Manaus, amarrada a uma caminhonete, quebrou.
A sorte do Alex era que passava por ali o paraense Lucenilton Almeida Viana, 40, iludido por uma empresa do ramo de terraplanagem de Boa Vista e já estava há sete dias a caminho de Porto Velho. O profissional de terraplanagem amarrou uma forte corda no carro de Alex junto a uma caminhonete tracionada, que, enfim, tirou do atoleiro o veículo branco, cujo parachoque dianteiro já estava rachado por causa do intenso atrito com a pista desnivelada.
“Valeu pela ajuda! Mais à frente, tem outro atoleiro e a gente se encontra de novo!”, disse Alex.
Lucenilton, que dirigia um Fiat Palio 2008, poderia passar cinco dias em uma balsa para chegar a Porto Velho, a tempo de curtir Natal e Ano Novo com a família, mas preteriu a opção. Até o km 285, ele disse ter gasto quase R$ 2,8 mil com combustível, hospedagem e manutenção. “Por esse caminho, não atolei, só cheguei a escorregar”, relatou.
O prejuízo, certamente, seria maior. Bem ali mesmo, ele percebeu que vazava água do sistema de arrefecimento do motor e que precisaria dirigir por mais 100 quilômetros até a uma oficina, com a condição de recarregar o radiador com a água barrenta que encontrar pelo caminho. Depois de tentar ajudar o até então desconhecido Alex, para não perder tempo, Lucenilton arrancou velozmente pela rodovia. Por quase 100 quilômetros depois, os dois não foram vistos.
A sensação de frio acaba depois do km 340 e, rapidamente, o sol dá às caras, depois do igarapé Roraima. Isso ao mesmo tempo em que a rodovia parece melhorar e dar condição para motoristas trafegarem por mais de 60km por hora. No entanto, os reparos de conservação feitos frequentemente pelas máquinas do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), mostram, pouco a pouco, que não resistem à mistura de chuva com o tráfego de veículos pesados; O resultado? Lama e buracos que chegam a cobrir quase a metade de um carro comum.
Pela rodovia, há placas informativas sobre a proibição de veículos de trafegarem com peso acima de 17 toneladas entre dezembro e maio, a época mais chuvosa na Amazônia, para não acabar com a estrada. Mas pelo caminho, não há fiscalização. Pelo contrário, sobram vítimas dos desgastes da rodovia, como um ônibus, atolado e encostado no barranco, no km 359, há quase um mês.
Há ainda trechos que colocam em perigo o comércio local às margens da BR-319. Pouco antes da ponte sobre o igarapé Rio Novo, localizado no km 363, dois ônibus de passageiros e um caminhão estacionam bem no meio da pista. Metros a mais para o lado faria os veículos destruírem o restaurante à beira de estrada.
Mais à frente, os dois veículos – Fiat Mobi e Palio – voltam à tona de novo. O clima já era de amizade entre os motoristas. O dono do Palio descobre um novo problema: o disco de embreagem quebrou. “A marcha tá dura”, reclama. Recarregou o reservatório do radiador com a água barrenta do lago ao lado. E tentou seguir, mas atolou. Alex tentou empurrar a dianteira do veículo. Sem sucesso.
A mesma caminhonete que resgatou o Fiat Mobi da lama, lá no km 285, retirou o Palio do Lucenilton dali. Enquanto isso, perto, um ônibus com 38 passageiros, entre crianças, jovens, adultos e idosos, tentava sair do atoleiro. Teve quem descesse do veículo e ficasse distante, com medo. Teve quem continuou dentro do veículo. Mas teve um corajoso grupo tentava empurrar o ônibus inclinado. Enxada, galhos e pedras por baixo também foram usadas. Mas só as máquinas do DNIT para tirar o veículo do lugar.
Menos de uma hora depois, e lá estava o ônibus atolado de novo. Perto dele, tinha ainda uma caminhonete, também atolada e quase caindo num lago à direita. A vítima da vez era um motorista de 34 anos, que viaja diariamente do município de Careiro Castanho (AM), próximo de Manaus, ao distrito de Realidade, quase na fronteira com Rondônia.
“Do tempo que eu tou andando por aqui, a estrada piorou bastante. Daí, a gente tem que ficar aguardando, porque não tem internet, celular, nada. A gente fica aguardando a boa vontade de alguma pessoa pra nos ajudar”, relatou.
Bem ali mesmo, Lucenilton relata que o motor e o parachoque de seu Palio 2008 caíram com tanto atrito pela rodovia. Mas ainda deu para ele chegar, quilômetros à frente, em um canteiro de obras de uma empresa que trabalha na recuperação da rodovia. Alex Dalazen, por sua vez, garante: “vou levar o Lucenilton pra Porto Velho. O carro dele quebrou todinho”.
E acabava ali o roteiro do Palio 2008, mais uma vítima da precária BR-319. Mesmo sem ter nada a ver com isso, era a vez de Alex se compadecer de Lucenilton, a quem levou até o distrito de Realidade. Deixou com ele o número para qualquer coisa. E assim, seguiu para Porto Velho, onde chegou depois de três dias de viagem.
Deu tempo de chegar para fazer uma angiografia cerebral, um exame que avalia a anatomia e a circulação dos vasos sanguíneos do cérebro, que comprovou a lesão de duas artérias cerebrais.
Ao repórter, disse que vai fazer, em janeiro, a cirurgia, que pode comprometer definitivamente a audição esquerda. “Depois que eu ficar bom, vou parar aí em Boa Vista, conhecer, tá bom?”.
*A história continua nesta quarta-feira (15) em folhabv.com.br