O amor é a forte afeição por outra pessoa, nascida de laços de consanguinidade ou de relações sociais. O estelionato, um termo jurídico que significa fraude por induzir alguém a uma falsa concepção de algo com o intuito de obter vantagem ilícita para si. As duas palavras são entendidas de formas diferentes, mas desde muito tempo têm andado juntas. Com a internet, as redes sociais e os sites de namoro, o estelionato sentimental ou o ‘golpe do amor’ são cada vez mais frequentes.
Inspirada nos casos e no acompanhamento de golpe do amor aplicado em uma amiga, a oficial do Ministério Público de Minas Gerais, Ana Cristina Alves escreveu a ficção ‘Eu confiei nele’. No enredo, Karen acredita estar envolvida em uma relação amorosa com o ator Michael Vienna, mas não imaginava que ele seria um golpista ávido por dinheiro.
Por entender como funciona a oficial explica que a ação dos estelionatários sentimentais é muito parecida. Tudo começa com a procura por assuntos banais e em comum, como o filme que mais gosta; depois informa que é uma pessoa de cargo importante ou até famoso, e em um mês diz que está apaixonado. Para provar o amor e destacar que a relação é real, com um fazendo parte da vida do outro, comemora conquistas pessoais e pede ajuda com problemas financeiros.
“Um relacionamento normal é um processo demorado, mas no caso dos golpes, eu notei que, em um mês, já tem altas declarações de amor nas conversas. Daí vai evoluir com o golpista ganhando a confiança da vítima e em determinado momento a conversa vai ganhar uma matriz econômica. Ele vai querer celebrar um contrato de trabalho ou incluir a vítima, porque ele a ama muito, naquele momento ou vai informar que está impossibilitado, por alguma razão, de movimentar a conta dele e pede à vítima para fazer essa transação dizendo que assim que ele tiver acesso, vai restituir. A vítima sempre caminha nesse viés e, cerca de dois, três meses depois, a conversa já tomou um rumo financeiro, de pedidos de transferências e depósitos”, explicou a oficial.
Normalmente, os casos ocorrem quando as vítimas são pessoas que passaram por uma desilusão amorosa e procuram um novo afeto ou atenção, pode ser em sites de namoro ou nas redes sociais, além de terem uma vida corrida. A oficial percebeu ainda que, normalmente, são mulheres de meia idade.
“Acho que elas não se dão conta da gravidade, acham que simplesmente conseguem encerrar a conversa e pronto. Só que, sem saber, ela cria uma uma dependência emocional com aquele golpista porque ele elogia, promete tudo o que ela não encontrou com outras pessoas. Ele dá tudo o que ela sempre quis na vida: escuta, fala palavras bonitas, como alma gêmea. Eles usam muito isso”, comenta.
Por outro lado, a delegada titular da Delegacia da Mulher em Roraima (Deam), Verlânia Assis, pontua que há possibilidade de homens também caírem no golpe do amor, mas que qualquer pessoa deve ficar atenta ao rumo que uma conversa na internet segue. Os sinais do golpe estariam nos detalhes.
“Tem que ser observado essa solicitação de valores, quantias e incidentes inesperados. Você não conhece a pessoa, não tem, muitas vezes, intimidade e de repente vem lhe pedir um certo valor? Então, essas vantagens, essas solicitações de quantias é um alerta para que você procure saber melhor quem é essa pessoa. Dinheiro e amor é algo que não se confunde, que não se mistura no início de uma relação”, disse a delegada.
Tipificação de crime
A primeira vez que o estelionato sentimental apareceu no Brasil foi em 2015, quando uma mulher de Brasília foi vítima do golpe ao fazer depósitos, que totalizaram quase R$10 mil, ao estelionatário.
A mulher entrou na justiça, identificou o homem e pediu o ressarcimento do valor. No ponto de vista do réu, o pedido de ajuda eram presentes doados pela “relação” que mantinham. Ele foi condenado, não porque aplicou um golpe, mas porque abusou do direito de ajuda e desrespeitou a boa-fé, configurada na lealdade e confiança.
De acordo com estudos na área do direito, os casos desse tipo são raros nos tribunais, mas é possível condenação quando a autoria do crime e a materialidade são reconhecidas, ou seja, quando há provas. Isso porque o estelionato sentimental ainda é tipificado como crime contra o patrimônio.
“O poder público não está aparelhado de forma eficaz para identificar essas pessoas. Especialmente em se tratando, atualmente, do ordenamento jurídico de um crime contra o patrimônio ainda. Ainda não tem aquela figura do crime de estelionato romântico no direito brasileiro”, informou a oficial do MP-MG, Ana Cristina Alves.
Para criminalizar a fraude por criar afeto em troca de valores ou bens, a Câmara dos Deputados aprovou, em agosto de 2022, um projeto que altera o Código Penal, artigo 171, e cria o estelionato sentimental. O projeto ainda está no Senado para aprovação. Se aprovada, segue para sanção ou veto do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva.
“Se ouve que a internet é uma terra de ninguém, é uma terra sem lei. E, no mundo jurídico, não é essa a perspectiva. Existem leis regulando as relações online. Mas o que que acontece é a forma de identificar essas pessoas que ainda é precária. Principalmente no Brasil, porque tem a lei mas é impedida de ser cumprida por falta de estrutura”, destacou a oficial.
Ação da vítima após o golpe
Mesmo sem a tipificação de crime de estelionato sentimental, uma ação deve ser tomada caso a vítima perceba que foi persuadida a fazer as transferências e depósitos bancários. “Procurar a delegacia. Registrar o boletim de ocorrência, entrar em contato com o banco para cancelar cartões, se for por meio de cartões. Se foi por meio de conta corrente, você vai ao banco e notifica a fraude para cancelamento de movimentação para que nós possamos começar a buscar identificação desse criminoso”, orienta Verlânia.
De acordo com a delegada civil, dependendo da quantia repassada ao estelionatário, pode haver estorno. No entanto, é preciso garantir a identificação do criminoso com informação de nome, CPF ou conta bancária, por exemplo.
“O estelionato do amor tem acontecido, com mais frequência, nas redes sociais. Mas, muitas vezes, também é marcado encontros, às vezes em locais íntimos, privados e essa mulher pode estar, além de ter caído no prejuízo, ela pode ser vítima de uma violência sexual, de uma violência física. Então é preciso ter muito cuidado com esses relacionamentos virtuais. Você precisa identificar quem é a pessoa, você não pode se encontrar com essa pessoa que não conhece em locais íntimos, de difícil acesso do público”, alerta a delegada, como medida de prevenção a um amor virtual que pode custar caro.
Em caso de denúncia, as vítimas podem registrar boletins de ocorrência no site da Polícia Civil de Roraima ou procurar a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM), na Casa da Mulher Brasileira, localizada no bairro São Vicente.
Com o estelionato sentimental crescendo no País, se informar sobre as características do golpe já seria um grande passo e, caso seja vítima, procurar ajuda seria um ato de coragem.
“Um dos motivos para resolver esse livro é para mostrar para as pessoas que tem como elas se recuperarem desse golpe, desde que elas tenham coragem e a humildade necessária para seguir em frente, porque a gente precisa ter humildade em reconhecer os próprios erros. Você vive e em algum momento você erra para estar naquela posição de vítima. Então, coragem de enfrentar aos poucos a situação. Não é um processo simples e rápido, é lento, mas ele acontece”, incentiva a autora, Ana Cristina.