O olhar é dilatado e fixo para frente. Eles caminham com passos pesados e mãos balançando, muitas vezes de punhos fechados e suor excessivo, sentindo insônia e ansiedade. Não parecem estar indo para algum lugar, e dificilmente interagem com as outras pessoas que estão por lá.
Este é o perfil de vários dos usuários de pasta-base que se afogaram em seus próprios vícios. O local é uma sequência de quadras nas proximidades do Terminal de Ônibus Urbano, no Centro, e que vai se alastrando pela área de interesse social Caetano Filho, conhecida como Beiral.
Apesar não haver dados precisos, a estimativa é que centenas de pessoas andem por essa região seja de dia ou de noite. O ponto de maior concentração, no final da rua Cecília Brasil, conta com uma margem de 80 a 160 pessoas entre usuários, revendedores e traficantes. Em ruas paralelas, como no caso da Ajuricaba e Cerejo Cruz, o fluxo é menor, mas ainda assim constante.
Uma das principais características do local é o cheiro de pasta-base, droga em formato de pedra feita de sobras do refinamento de cocaína. Ela é considerada extremamente viciante, e o seu cheiro facilmente impregna. Muitos dos usuários que andam pelo Beiral catam latinhas ou outros materiais do chão, para que possam usar como cachimbo.
Ao se aproximar do local, as mais diversas ofertas já são feitas, perguntando se o interesse é por maconha regional, supermaconha, conhecida como skunk, cocaína ou base. Muitas vezes, existem concorrências entre revendedores. A maior parte dos que compram drogas vão para lá de bicicleta. Existem alguns que entram no Beiral de carro, mas são raras as vezes. No caso desses, é mais comum estacionar o veículo em uma distância segura e ir a pé para o local.
Famílias temem pela falta de segurança
A maioria das famílias que convivem com esse cenário é tradicional, descendentes de pescadores. Os entrevistados, que não terão os nomes revelados, apontam que o Beiral sempre foi um ponto conhecido pelo tráfico de drogas, um problema social que não tem solução, por maior que seja o policiamento ostensivo.
Uma das moradoras, que vive em uma avenida próxima a uma boca de fumo, contou que não é comum ocorrerem assaltos ou roubos, uma vez que os traficantes respeitam a privacidade dos moradores.
“Nós nunca tivemos problemas de assalto, eles sempre respeitaram a nossa privacidade até certo ponto. Nós ficamos aqui e eles ficam lá, ninguém se mete na vida de ninguém. O máximo de interação que temos com eles é quando pedem isqueiro emprestado.
Existem até alguns dos traficantes que passam por aqui e falam que nada de errado vai acontecer conosco. Mas mesmo assim, somos prevenidos. Deixamos o portão trancado e nos trancamos em casa às 19 horas”, relatou.
Outra moradora, da mesma avenida, disse que, apesar da desapropriação de terrenos no Beiral ter sido positiva para que inconveniências como o cheiro e o fluxo de usuários diminuíssem, ela ainda contribui para que essa massa se espalhe para outras quadras, muitas vezes de igrejas, onde praticam vendas de drogas.
“A obra da Prefeitura vem sendo bastante positiva. Vemos o pessoal trabalhando todos os dias na região em que os terrenos foram desapropriados. Entretanto, quando essa nova praça ficar pronta, tememos que os traficantes se adaptem e voltem a ficar por lá. Eles sempre se adaptam. Não há como acabar com o tráfico nessa região, pois ele já acontece há décadas e décadas”, afirmou.
Moradores da rua Francisca Sampaio relatam também não possuir problemas quanto às atividades ilícitas em si. Um morador mencionou que é comum a prática de abordagens violentas dos policiais, por acharem que os moradores da rua possuem ligação com o crime organizado. Muitos dos moradores, por trabalharem até tarde da noite, são abordados.
“O nosso problema aqui não são os traficantes, mas sim a polícia. Já fui abordado, colocado contra a parede, chutado, tantas vezes. Eles tiram fotos de placa de moto e, por não encontrarem nada, só vão embora”, comentou.
Outra moradora apontou que essas abordagens costumam ocorrer principalmente após intervenção da polícia no Beiral, que faz com que muitos saiam correndo para ruas paralelas.
“Eles correm por entre as ruas e passam por aqui. Alguns até pedem para entrar em casa, mas eu não deixo. Então eles continuam correndo para outros lugares. Mesmo assim, policiais aparecem, pedem para revistar casa, carro, tiram foto de tudo e vão embora, deixando os traficantes fugirem”, relatou.
Uma das críticas feitas foi quanto à falta de contemplação de indenizações da Prefeitura de Boa Vista em meio às obras de revitalização do Beiral. Moradores apontam que a desapropriação foi prometida há um ano e ainda não foi cumprida.
“Se a Prefeitura viesse aqui me dar indenização para sair dessa rua, eu faria isso com maior prazer. Entretanto, ficou a promessa por um tempo e até agora não recebemos nada. O ruim de morar por aqui são as enchentes, principalmente, elas molham a casa toda”, afirmou uma moradora.
PM diz que faz rondas todas as noites
A Polícia Militar informou, por meio de nota, que realiza policiamento diuturnamente em toda Capital, bem como no bairro Caetano Filho, o Beiral. O órgão destacou que realiza abordagens pontuais de pessoas, além de apreensão de entorpecentes.
“Na referida área, o 1º Batalhão realiza as ações diariamente.A região conta ainda com reforço da Segunda Malha que realiza cobertura tática, por meio de unidades como o Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) e do Giro (Grupamento Independente de Intervenção Rápida Ostensiva)”, explicou.
Já a Polícia Civil afirmou estar atuando em conjunto com todas as forças de segurança do Estado no combate intensivo às organizações criminosas, tráfico de armas e vários ilícitos cometidos por criminosos na Capital, nos municípios e também nas fronteiras com a Venezuela e Guiana.
“Várias ações têm sido desencadeadas para desarticular a atuação de quadrilhas, dando respostas rápidas com soluções de crimes e prisões”, ressaltou.
PREFEITURA – A reportagem da Folha entrou em contato com a Prefeitura de Boa Vista questionando o andamento das obras de revitalização no Beiral, bem como o andamento do processo de desapropriação e indenização de moradores, mas não obteve resposta até o fechamento desta matéria. (P.B)