Cotidiano

Primeiro júri popular indígena será realizado hoje na Raposa Serra do Sol

Pela primeira vez a Justiça Estadual vai realizar um júri em terra indígena com os jurados sendo todos indígenas

O primeiro Júri Popular Indígena do Brasil será realizado hoje, às 9h, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no Município do Uiramutã, ao Norte de Roraima, oportunidade em que um corpo de sete jurados, todos indígenas das etnias Macuxi, Ingaricó, Patamona e Taurepang, terão a missão de decidir sobre este caso que, segundo os costumes indígenas, teria ligações com o espírito do Canaimé.
A Comarca do Município de Pacaraima está responsável pela realização do júri que acontecerá no Malocão da Homologação, na comunidade Maturuca, localizada na região onde ocorreu a tentativa de homicídio no ano de 2013. Por questões de segurança, o acesso ao local está sendo possível somente a pessoas que foram credenciadas pelo Tribunal de justiça de Roraima (TJRR), tendo como responsável o juiz Aluizio Ferreira.
Em entrevista à Folha, o juiz dá como certo o fato de os indígenas utilizarem como defesa a convicção cultural de que a vítima estaria controlada por um Canaimé, um espírito do mal da crendice indígena. Segundo ele, o ato, que estava sendo elaborado há mais de um ano, foi um acordo entre as comunidades.
“O júri é um ato específico de investigação e, em razão de ser um crime contra a vida, seria levado a julgamento na Comarca de Pacaraima, com jurados que compunham o município, ou seja, brancos. No entanto, por se tratar de um crime que ocorreu dentro da comunidade, entramos em um acordo com as lideranças e faremos lá, conforme acertado anteriormente, no mesmo local onde aconteceu este fato”, disse.
Para o julgamento, todos os atos formais seguiram o procedimento legal previsto no Código de Processo Penal. As lideranças indígenas lidam com a experiência inovadora como uma forma de unir as comunidades da região. “Temos compromissos com a região e suas lideranças. Vamos cumprir o que está escrito, com o acordo tomado por nós, em uma assembleia, e com isso esperamos alcançar nossos objetivos”, relatou o coordenador da Região das Serras, Zedoeli Alexandre.
Conforme o juiz do caso, o ato é uma forma de fazer com que as comunidades tenham uma maneira de fazer justiça. “É uma forma diferente de se olhar e resolver os conflitos. Não sei se isso será seguido por outros magistrados, mas creio que é importante para que coloque a questão sobre a reflexão da sociedade e do mundo jurídico”, pontuou.
CANAIMÉ – Esse julgamento envolve a questão cultural por causa da alegação de que haveria uma motivação do crime por causa do Canaimé, uma entidade do mal que faz parte da crença dos índios de Roraima, Guiana e Venezuela. O tema já suscitou debate acadêmico e estudo científico.
Existem teses que analisaram fatos semelhantes, como o “Caso Canaimé: em acerca de um homicídio com motivação cultural e sua interpretação pelo Poder Judiciário”, de autoria de André Paulo dos Santos Pereira, de 2009.
Conforme o estudo, a partir da leitura de depoimentos de outros casos, o mito do Canaimé é um elemento presente e recorrente na cultura dos povos que vivem na Terra Indígena Raposa Serra do Sol.  “Tal elemento, muito mais do que influenciador, é determinante dos fatos do caso em análise, servindo de excludente da ilicitude do crime”, diz o estudo.
Geralmente esses confrontos ocorrem entre índios de comunidades diferentes, onde o Canaimé é uma construção mitológica intensa “e que assusta, amedronta, causa pânico e, por fim, suscita sentimentos violentos e instintivos”, afirma o estudo. “A tradição oral que resiste ao contato com os não índios e sua tecnologia persiste na tradição e como manifestação cultural ensinada até nas escolas pelos professores indígenas”.