Cotidiano

Vídeo polêmico foi gravado em junho

Suposto advogado do Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados aparece em vídeo orientando imigrantes sobre ocupações a propriedades privadas

Um minuto e 26 segundos. Esse é o tempo de duração de um vídeo que mostra um membro da Organização Não Governamental (ONG) Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados (SJMR) em Roraima, dando orientações a imigrantes venezuelanos sobre como proceder no caso de ocupação de terrenos e reintegrações de posse.

“Quando ele descobre que a propriedade está ocupada, ele quer de volta, mas como ele pensou que poderia ter de volta? Chamando a polícia. Isso não pode acontecer. Se o proprietário quiser a propriedade de volta ele terá que entrar na justiça e conseguir um mandado e quem faz a desocupação é um oficial de justiça”, detalha aos imigrantes.

O vídeo foi filmado no dia 29 de junho, após imigrantes terem sido expulsos de uma pousada, aparentemente abandonada, pela Polícia Militar e a Guarda Civil Municipal. A retirada teria sido um pedido do dono, que não apresentou documentos comprovando que a pousada seria de sua posse no momento em que tudo ocorreu. O homem orientando os venezuelanos seria um advogado prestando assistência jurídica após o ocorrido.

Mais de um mês após o registro ser feito, o vídeo ganhou repercussão, despertando diversos comentários sobre a legalidade do que estava sendo dito e em como isso poderia afetar a vida dos roraimenses. 

SJMR – A reportagem da Folha foi à sede do Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados, na avenida Ataíde Teive, bairro Liberdade, mas foi impedida de entrar. Até mesmo os atendimentos aos imigrantes foram interrompidos ao longo da terça-feira, 31. Por causa disso, muitos deles ficaram esperando por horas, segurando documentos e aguardando orientações jurídicas, sem qualquer retorno.

A equipe de reportagem da Folha entrou em contato com o homem que estava orientando os venezuelanos. Segundo ele, uma reunião será feita pela SJMR hoje, 1º, quando a situação como um todo será avaliada, para que haja um pronunciamento até quinta-feira, 2. (P.B)

OAB irá investigar atitude de suposto advogado

Em entrevista à Folha, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil em Roraima (OAB-RR), Rodolpho Morais, afirmou que o órgão pretende investigar a postura do homem, que supostamente é advogado. “Esse vídeo chegou ao nosso conhecimento através das redes sociais e logo depois ficamos sabendo que se tratava de um suposto advogado. Nós iremos analisar, antes de mais nada, se ele é inscrito na OAB. Seja daqui ou de qualquer parte do país. Afinal, só podemos impor qualquer tipo de punição para quem é inscrito”, explicou.

Caso ele seja advogado com registro na OAB, será submetido ao Conselho de Ética, podendo se defender e recorrer da decisão. Se culpado, a pena poderá ser desde uma advertência até a expulsão da OAB. “Após isso, haverá um julgamento do caso, para saber se houve alguma irregularidade na sua atitude. Nós não temos como julgar se a orientação dele foi certa ou errada, uma vez que a investigação ainda será aberta, por meio de um ofício, para que haja esclarecimento. Ele terá direito de recorrer ou entrar com recurso”, disse.

Rodolpho finalizou dizendo que, em casos de ocupação de propriedade privada, é recomendável que o proprietário e o ocupante procurem advogados para esclarecer o que pode ser feito ou não. “Existem leis bem claras em relação ao respeito às propriedades particulares, mas aplicar isso a um caso concreto é complicado, pois cada situação possui sua peculiaridade. Por isso digo que, antes de qualquer outra atitude, procure alguém que te oriente sobre quais procedimentos, dentro da legalidade, tomar. Ou seja, um advogado”, concluiu.

 

Especialistas dizem que repercussão reflete indignação da população

O antropólogo Édio Batista comentou que o sentimento de indignação do roraimense, que hoje se vê sem segurança e sem saúde, somada às diferenças culturais de comportamento, culmina em um sentimento de negação a todos os imigrantes e, como consequência, alimenta sensação de ‘rebaixamento’ em seus direitos perante a migração.

“Muitos se sentem inferiorizados com a migração, vendo abrigos sendo cedidos aos refugiados, e percebendo o impacto do fluxo migratório na saúde e segurança pública. Para os venezuelanos, o Brasil é uma espécie de solução para problemas, como a fome. Mas o estado brasileiro não está suportando uma demanda desse tamanho. E a população sente isso, criando uma sensação de prejuízo. As pessoas se sentem rebaixadas, mas esquecem que o que faz a imagem do Brasil ser considerada elevada é justamente a sua política de acolhimento, que sempre exalta estar aberta a todos os povos, e agora precisa cumprir o que diz”, avaliou.

Sobre o vídeo, Batista explicou que ganha relevância por alimentar uma movimentação proveniente de choque entre um país que visa cumprir sua política de manter as portas abertas, mesmo que não dando real investimento na forma com que isso é administrado. “O que podemos tirar do vídeo é que a orientação dada não diz respeito a uma ‘apropriação’ do local pelos venezuelanos, mas sim uma explicação de que o uso da violência na retirada deles só seria aceitável com um mandado. O tom de sua voz não possui maldade e não aparenta ser de alguém que visa incitar violência. Ele estava prestando uma consulta jurídica e dizendo que eles podem ficar lá, mas se o mandado fosse apresentado, a saída teria de ser espontânea”, explicou.

Já a socióloga Carla Domingues aponta o vídeo como uma ferramenta política e explica que atitudes de reprovação serão mais constantes, levando em conta que o ano atual apresenta um cenário politicamente delicado e com um futuro incerto. “Penso que divulgação do vídeo, em que o representante da ONG explica os trâmites legais em caso de ocupação, foi mal interpretada. A meu ver, houve uma fala que antecedeu a gravação e há todo um contexto a ser analisado. Infelizmente, veremos pessoas usarem esse vídeo para se promover e com isso alimentar a raiva dos brasileiros, culminando num prenúncio à violência”, concluiu. (P.B)