No lote 08, da quadra 19 de um cemitério no bairro Centenário, em Boa Vista, o corpo de uma indígena Yanomami foi enterrado em um túmulo coletivo com outras três pessoas. Ana Yanomani Xexena foi morta com um tiro na cabeça no último 11 de novembro, quando estava acampada com um grupo de Yawari, próximo a Feira do Produtor, em Boa Vista.
Na cultura Yanomami, os corpos são cremados durante uma cerimônia fúnebre com danças e cantos. As cinzas, após um período de espera, são misturadas com mingau de banana para que a comunidade beba e assimile as qualidades positivas do morto. No caso de Ana, ela foi enterrada na segunda-feira (23 de janeiro), após ter o corpo liberado no Instituto Médico Legal (IML) a um servidor da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), conforme a Polícia Civil.
Além do autor do disparo, que ainda não foi preso, a mulher Yanomami também foi vítima de um problema gerado durante a ditadura militar, que a fez sair da comunidade e viver seus últimos momentos em situação de rua.
Teses, pesquisas e o relatório da Comissão Nacional da Verdade, mostram que as ações do governo ditador, a partir de 1970, introduziram na Terra Yanomami a prostituição, consumo de cachaça e doenças como sarampo, gripe e malária, além de atraírem o garimpo, considerado o principal responsável pela crise sanitária na região.
O grupo Yawari, subetnia Yanomami, do qual Ana pertencia, vive no vale do rio Ajarani e quase foi dizimado durante a construção da BR-210, chamada de Perimetral Norte. Neste período, a Comissão da Verdade estima que este povo foi reduzido de 400 nos anos 1960 a 79 indivíduos em 1975. Desde então a cultura e a estrutura social desse grupo foi desestabilizada.
Na tese da antropóloga Elizene Miranda da Silva, de 2020, com o tema “Drama Social e a Memória entre os Yawaripë (Yanomami do Ajarani)”, ela afirma que mesmo com os impactos do contato durante a construção da BR-210, os Yawari das Serras do Pacú, grupos Xexenas e Maimashi não saíram da área e passaram a se relacionar, com mais frequência, “com outros agentes de contato, sendo o garimpo o principal deles”.
Os Yawari das Serras do Pacú, conforme Elizene, “são marginalizados por uma grande parte” dos outros grupos da subetnia, “com os quais pouco se relacionam e por quem muitas vezes são evitados por serem considerados de difícil trato, ― sempre bêbados e briguentos”. E são justamente os conflitos entre eles, a maior reclamação de pessoas que trabalham na Feira do Produtor, principal ponto de acampamento dos indígenas. A dona de um restaurante, que pediu anonimato, disse à reportagem que a situação ocorre há pelo menos seis anos, mas “piorou” em 2022.
A reportagem procurou a Funai para saber quais ações são realizadas pelo órgão para prestar assistência aos Yawari em situação de rua, mas não teve resposta até a publicação. Um servidor da Fundação ouvido pela Folha, que não quis ser identificado, informou que os indígenas recebem alimentação e são transportados para a comunidade, mas refazem o trajeto de volta à pé, em uma caminhada de três semanas.
A FolhaBV também entrou em contato com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e Ministério Público Federal (MPF) para saber se ambos os órgãos realizam também algum acompanhamento a esses indígenas, mas não teve retorno.
Para o vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, Dário Kopenawa, a situação de vulnerabilidade em que o grupo Yawari vive nas ruas, é de responsabilidade do estado e consequência do aliciamento feito pelo garimpo para prejudicar a imagem dos Yanomami.
“Alguns são beneficiários do Bolsa Família e aposentadoria, alguns estão atrás de ferramentas, terçado, facão para abrir roças. Então, essas pessoas não estão vindo para a cidade por fome, mas por falta de responsabilidade do Estado. Eles [Yawari] estão caindo na bobeira de violência, alcoolismo e isso prejudica bastante. São diversas situações. Doença da cidade”, disse.
Terra Yanomami
O território Yanomami é o maior do país e está concentrado entre os estados de Roraima, Amazonas e uma parte da Venezuela. Ao menos 30,4 mil indígenas vivem na região, em 386 comunidades. O Ministério da Saúde decretou emergência de saúde pública na reserva devido a crise sanitária por desnutrição, indígenas afetados por diversas doenças e mortes por falta de assistência.