"NÃO EXISTE SANTO NA GEOPOLÍTICA", APONTA

Como guerra econômica entre EUA e China impacta no Brasil? Economista explica

Economista esclarece principais pontos sobre medidas de Trump, retaliações pela China e possíveis impactos para o Brasil.

Montagem: Adriele Lima/FolhaBV
Montagem: Adriele Lima/FolhaBV

A crescente escalada da guerra tarifária entre Estados Unidos e China reacende preocupações globais sobre os rumos da economia internacional, remete a momentos históricos de instabilidade e coloca países como o Brasil diante de oportunidades e desafios.

Linha do Tempo da Guerra Comercial EUA x China (2018–2025)

Desde o retorno de Donald Trump à presidência americana e o reforço de sua política econômica protecionista, o mundo assiste a uma reconfiguração das relações comerciais entre as maiores potências — e seus efeitos colaterais já se fazem sentir muito além de Washington e Pequim.

Foto: Chip Somodevilla/Getty Images

O início de tudo: Trump, tarifas e a volta ao isolacionismo

Durante sua primeira campanha eleitoral, Donald Trump prometeu proteger a indústria americana do que classificava como práticas desleais de países como a China. Na presidência, ele cumpriu a promessa com uma postura agressiva: iniciou uma guerra comercial com o gigante asiático, elevando tarifas sobre produtos chineses em nome da “reciprocidade”.

Segundo o economista Fábio Martinez, entrevistado pela Folha BV, essa visão se baseia na percepção — considerada equivocada por muitos analistas — de que os Estados Unidos estariam empobrecendo por conta da desindustrialização.

“A maior economia do mundo não está encolhendo”, destaca ele. O que se observa, explica Martinez, é a realocação das cadeias produtivas em busca de maior rentabilidade e produtividade, algo comum em economias globalizadas.

O retorno de Trump à presidência intensificou esse cenário. Agora, a guerra tarifária não está mais restrita à China: “Ele voltou a implementar tarifas, mas não apenas contra a China, e sim contra o mundo todo”, afirma o economista.

A lógica das tarifas de Trump

As tarifas impostas pelos EUA variam conforme o déficit ou superávit comercial com cada país. No caso da China, com quem os EUA têm um enorme déficit, as tarifas chegaram somam 145%, como noticiado pela imprensa mundial. Já o Brasil, que importa mais dos EUA do que exporta, foi taxado em apenas 10%.

Mas, como explica Martinez, o critério não é apenas econômico. A decisão de impor tarifas muitas vezes é política e unilateral, com o presidente americano podendo decretá-las por meio de ordem executiva — sem necessidade de aprovação do Congresso. Isso torna o cenário volátil: decisões podem ser implementadas e revertidas rapidamente, como ocorreu com o Canadá, cujas tarifas foram suspensas por 90 dias para novas negociações.

Foto: Kevin Frayer

Retaliações e realinhamentos

Do outro lado, a China responde com tarifas próprias e busca novas alternativas para seus produtos. Isso afeta diretamente a dinâmica global, uma vez que os EUA e a China são os dois maiores mercados consumidores do planeta.

Se a China não pode mais vender para os americanos com as mesmas condições, ela buscará escoar seus produtos em outros países — e o Brasil está entre os principais alvos.

Impactos no Brasil: entre oportunidades e ameaças

A guerra comercial abre oportunidades, mas também riscos para o Brasil. Na última rodada de tensões, em 2017, o país se beneficiou com a abertura do mercado chinês para seus produtos agrícolas. A tendência pode se repetir agora, favorecendo exportações de carne, soja e frango.

“Se o mercado chinês se fecha para produtos americanos, o Brasil pode suprir essa demanda”, observa Martinez. Isso, contudo, pode ter um efeito colateral interno: com maior volume sendo exportado, os preços desses alimentos podem subir no mercado doméstico.

Por outro lado, o Brasil também poderá enfrentar uma enxurrada de produtos chineses. A China, impedida de vender para os EUA, deve redirecionar seus estoques excedentes para países como o Brasil, o que pode resultar em dumping (venda abaixo do custo) e prejudicar indústrias locais.

Já se observa esse movimento: fábricas chinesas estão sendo instaladas no Brasil, como a de uma gigante de telecomunicações em Manaus. “Eles vêm para cá, constroem fábrica, produzem localmente para driblar tarifas”, diz Martinez.

No entanto, nem sempre isso significa geração de empregos locais. “Muitas vezes, a mão de obra vem da própria China, o que minimiza os benefícios diretos para o trabalhador brasileiro”, alerta.

Mais produtos, mais concorrência — mas a que custo?

A entrada de mais produtos chineses no Brasil pode beneficiar o consumidor, ao aumentar a oferta e reduzir preços. Um exemplo disso são os carros elétricos chineses, que chegaram ao país com preços acessíveis. Em contrapartida, esse movimento pressiona a indústria nacional, que já luta contra altos custos e falta de competitividade.

“O Brasil é um país muito protecionista, o que limita a concorrência. Mas, com a entrada de novos players, isso muda”, afirma Martinez.

A diversificação de marcas e produtos pode baratear o consumo, mas também aumenta a concorrência por empregos e por espaço no mercado\

Uma fila de distribuição de comida em Nova York durante a Grande Depressão dos anos 30 – Foto: Shutterstock

O fantasma de 1930: uma crise à vista?

Historicamente, guerras tarifárias já precederam grandes crises. A Grande Depressão de 1929 foi agravada por políticas protecionistas implementadas pelos EUA nos anos 1930, que resultaram em uma contração do comércio global.

O que é a contração comercial?

A contração do comércio global ocorre quando há redução no volume de bens e serviços trocados entre os países. Ela é reflexo de políticas protecionistas, crises econômicas, tensões geopolíticas ou choques externos (como pandemias ou guerras), que afetam a confiança e a capacidade de importação e exportação.

Em termos técnicos, isso significa que o crescimento do comércio internacional fica abaixo do crescimento do PIB global, ou até mesmo registra queda, o que indica que os países estão comprando e vendendo menos entre si.

O que foi a Crise de 1930?
A Grande Depressão teve início com a quebra da Bolsa de Nova York em 1929 e mergulhou o mundo em uma grave recessão. Um dos fatores que agravaram a crise foi o Smoot-Hawley Tariff Act, que aumentou tarifas de importação nos EUA e provocou retaliações de outros países. O comércio global entrou em colapso, intensificando a recessão mundial.

Embora Martinez descarte uma crise idêntica à de 1930, ele admite que há um risco real de recessão. “A estimativa hoje é de mais de 60% de chance de algum tipo de recessão global”, afirma.

Mundo menos cooperativo

A guerra tarifária também rompe com o espírito de cooperação que emergiu após a Segunda Guerra Mundial.

O pós-guerra e o multilateralismo
Após 1945, potências globais — com os EUA à frente — criaram instituições como a ONU, o FMI e o GATT (antecessor da OMC) para fomentar cooperação econômica e evitar novos conflitos. A ideia era integrar economias, promover comércio e garantir estabilidade.

Esse sistema está sendo ameaçado, segundo Martinez, com o avanço de políticas protecionistas e o rompimento de acordos multilaterais. “O que preocupa é a quebra dessa lógica de integração. Isso é similar ao período anterior à Primeira Guerra Mundial”, alerta.

Antes da Primeira Guerra Mundial
No início do século XX, potências europeias disputavam mercados e colônias, adotando políticas protecionistas, expansionistas e militarizadas. O resultado foi a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914.

Linha do Tempo

Estados UnidosChina
2018 – Trump impõe tarifas sobre painéis solares e máquinas de lavar para proteger a indústria americana.2018 – Retaliação chinesa: tarifas sobre produtos agrícolas, como soja e carne.
Julho 2018 – Tarifa de 25% sobre US$ 34 bi em importações chinesas.Julho 2018 – China responde na mesma moeda: tarifa de 25% sobre US$ 34 bi em produtos dos EUA.
2019 – Trump ameaça taxar todos os US$ 500 bi em importações chinesas.2019 – A China desvaloriza o yuan e busca novos mercados para mitigar perdas.
Janeiro 2020 – Fase 1 do acordo comercial: China promete comprar mais produtos dos EUA.Janeiro 2020 – Pequim aceita o acordo, mas cumpre parcialmente as metas prometidas.
2021 – Biden mantém tarifas de Trump e adota tom mais diplomático.2021 – China adota postura cautelosa, mas mantém apoio estatal a empresas estratégicas.
2023 – Escalada de tensões com subsídios dos EUA a chips (Lei CHIPS).2023 – China proíbe produtos da Micron e amplia apoio a sua indústria de semicondutores.
2024 – EUA amplia sanções a empresas de IA e chips chinesas.2024 – China restringe exportações de minerais críticos, como gálio e germânio.
Fev 2025 – EUA impõem taxa extra de 10%, somando-se aos 10% existentes: tarifa chega a 20%.Mar 2025 – China observa e prepara resposta estratégica.
2 Abr 2025 – Trump anuncia tarifa extra de 34%, totalizando 54% sobre produtos chineses.3 Abr 2025 – China retalia com tarifa de 34% sobre importações dos EUA.
5 Abr 2025 – EUA sobem mais 50% nas tarifas, totalizando 104%.7 Abr 2025 – China eleva suas tarifas totais a 84%.
9 Abr 2025 – Trump anuncia aumento de 125% nas tarifas, como resposta à retaliação chinesa.10 Abr 2025 – Casa Branca confirma tarifa total de 145% sobre produtos da China.

O que esperar daqui para frente?

O cenário é instável. Mudanças podem ocorrer a qualquer momento — como a prorrogação recente das tarifas americanas por 90 dias, sinalizando tentativas de negociação. O Brasil, por sua vez, deve ficar atento às oportunidades e riscos.

“Não existe santo na geopolítica”, resume Fábio Martinez. A guerra comercial entre EUA e China é, em última instância, uma disputa de poder e influência. E o resto do mundo, mesmo tentando se equilibrar, não está imune aos seus efeitos.

A guerra tarifária entre Estados Unidos e China é mais do que uma disputa econômica. É um reflexo de mudanças profundas na ordem mundial, com implicações diretas para o Brasil.

Seja pela oportunidade de exportar mais, seja pelo risco de inundação de produtos importados, o país está no centro de um tabuleiro em constante movimento. O desafio é aproveitar as chances sem comprometer sua própria estrutura produtiva.

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