DENÚNCIA

Guardas são acusados de alterar ocorrência para prejudicar jovem em cumprimento de pena

SMST disse que abordagem ocorreu conforme protocolo de conduta operacional de revista pessoal, mas não comentou acusações de manipulação

Viatura da Guarda Civil Municipal de Boa Vista em frente à sede da SMST (Foto: Giovani Oliveira/Semuc/Ilustração)
Viatura da Guarda Civil Municipal de Boa Vista em frente à sede da SMST (Foto: Giovani Oliveira/Semuc/Ilustração)

A profissional do lar Raquel Amorim de Lima, de 45 anos, acusou guardas civis municipais de Boa Vista de manipular uma ocorrência para prejudicar o cumprimento de pena do filho dela, o auxiliar de serviços gerais Renan Lima de Souza, 25 anos. Ela denunciou o suposto abuso de autoridade à Polícia Civil de Roraima (PCRR), ao Ministério Público de Roraima (MPRR) e à ouvidoria da Guarda Civil Municipal (GCM). Confira o vídeo ao final da reportagem.

Condenado a seis anos, cinco meses e 23 dias de reclusão, em regime inicialmente semiaberto – por participar de um assalto em 2018 -, Renan estava em regime aberto e, portanto, podia ficar na rua de segunda a sexta-feira, das 6h às 20h.

Em 8 de novembro (quarta-feira), por volta das 19h, em uma quadra de futsal da Praça Germano Augusto Sampaio, no bairro Pintolândia, zona Oeste de Boa Vista, Renan e outras dezenas de jovens foram submetidos a uma abordagem conduzida por três agentes da Romu (Ronda Ostensiva Municipal). Eles, no entanto, não encontraram nada de ilícito com o grupo, mas prenderam o auxiliar de serviços gerais e outro albergado, de 29 anos, por descumprimento de horário.

No relatório policial, os guardas explicaram que decidiram abordar todos os homens que jogavam bola na quadra após sentirem um forte odor de entorpecentes, e que o descumprimento da restrição justificou a prisão da dupla, que foi levada algemada para a Dicap (Divisão de Inteligência e Captura). O documento consta que a ocorrência iniciou às 20h30 e terminou às 21h22.

Dias depois, Renan foi encaminhado à Penitenciária Agrícola de Monte Cristo (Pamc). Em audiência na quinta-feira (16), a Justiça estadual reconheceu que o jovem praticou “falta grave” por descumprir regras do regime aberto e, portanto, ele regrediu para o semiaberto e teve suspenso um terço de eventuais dias remidos.

“Ainda conforme decisão da Justiça, foi reclassificada a conduta do apenado para ‘má’, nos termos do art. 99, IV, do regimento interno do sistema penitenciário do Estado de Roraima”, informou a Sejuc (Secretaria Estadual de Justiça e Cidadania).

Albergados por último na ocorrência

Testemunhas e o próprio Renan afirmaram que, na revista iniciada por volta das 19h, o auxiliar de serviços gerais seria o primeiro a ser abordado, mas acabou ficando por último. Isso apesar da insistência dele ao pedir aos guardas para ser revistado antes das 20h.

“Eles ficaram injustamente segurando e humilhando o meu filho com o pé machucado”, disse a mãe à Folha. Renan foi ao local, após chegar do trabalho, para emprestar a bola aos amigos para jogar futebol de salão. Ele não jogou no dia porque estava lesionado.

Amigo de Renan, o ajudante de eletricista Márcio Pereira Lopes, de 28 anos, disse ter ouvido os agentes dizerem que esperaria chegar às 20h para levar os albergados para a Dicap por suposto descumprimento de horário de albergue. “Ficaram entre eles mesmos comentando – e eu escutando – de que iriam segurá-los até o horário. Pegaram os albergados e os colocaram para o fim da fila”, disse. “Foi tudo injusto, uma perseguição”.

Ação registrada em vídeo

Guardas civis municipais durante abordagem a albergado em quadra de futsal da Praça Germano Sampaio (Foto: Reprodução)

Parte da ação dos agentes foi gravada por um dos abordados a partir das 19h14 para registrar possíveis excessos da equipe. O vídeo obtido pela Folha tem mais de 1h10 e mostra, aos 24 minutos, o momento em que um dos albergados diz que pode ficar na rua até às 20h e recebe ameaça do comandante da ocorrência, por meio de um dos guardas: “Ele disse pra vocês ficarem quietos, se não vamos ter ‘grosso’ pra vocês”.

Por volta das 19h40, Raquel Amorim chega ao local da abordagem e é expulsa da quadra pelos guardas após tentar explicar a razão pela qual o filho estava lá. Depois, um guarda se aproxima de Renan e ironiza a conversa que teve com sua mãe, ao dizer que, para ela, o filho é um “santo”, ao se referir ao fato dele ser usuário de drogas.

Nove minutos antes do limite da restrição de horário, Renan reclama da abordagem, nega estar com drogas e um guarda diz que, por isso, ninguém o prenderia com entorpecentes. Renan novamente critica a equipe: “Isso é errado, senhor, fui pego sete horas. Isso é injusto!”.

Renan diz que era o primeiro entre os que seriam abordados, mas que foi colocado por último. “Eu tenho que sair desse processo, vou me prejudicar por causa disso, senhor”, diz Renan. O guarda cita abordagem anterior ao suspeito e o acusa de vender drogas, mas ele nega.

Após às 20h, a mãe do albergado se aproxima do filho, começa a chorar e ambos conversam sobre como cuidar dos dois filhos de Renan. Ele explica a ela que foi à quadra apenas para jogar bola e que, naquele dia, não usou drogas. O vídeo termina logo após o dono do celular ser revistado e, portanto, não registra o fim da abordagem geral. “Isso que houve foi abuso de autoridade. Meu filho tava cumprindo o horário”, diz Raquel Amorim, que após ameaçar denunciá-los, os guardas retiraram o velcro que mostram os nomes deles.

Em nota, a SMST disse que as imagens mostram que a abordagem ocorreu conforme protocolo de conduta operacional de revista pessoal. No entanto, a pasta municipal não comentou as acusações de manipulação da ocorrência no relatório.

Caso é investigado

A Polícia Civil confirmou a existência de investigação sobre “eventual atividade policial excessiva na abordagem do reeducando” e informou que a apuração é conduzida pelo 4º Distrito Policial. A SMST disse que o caso é investigado pelo Comando-Geral da GCM e explicou que os agentes serão responsabilizados “caso seja comprovada qualquer irregularidade na abordagem”.

A Promotoria de Justiça de Execução Penal, Crimes Militares e Controle Externo da Atividade Policial do MPRR também investiga o caso. Em audiência de justificação, o órgão se manifestou pelo depoimento de uma testemunha que teria presenciado a abordagem, porém, no momento dessa reunião, a pessoa não atendeu às tentativas de contato realizadas – a testemunha citada é Márcio Pereira Lopes. Segundo o MP, o procedimento ainda está em fase de diligências e, ao ser concluído, serão adotadas medidas cabíveis.

Assista ao resumo da abordagem a Renan