João Paulo M. Araujo
Professor de filosofia na UERR
Dentre tantas coisas, o período helenístico da filosofia é marcado pelo surgimento de três grandes escolas de pensamento: o estoicismo, o epicurismo e o ceticismo. Duas delas criaram seus próprios modelos explicativos em termos metafísicos, epistemológicos e até mesmo éticos. Todavia, na contramão dessas escolas, o ceticismo cultivou uma atitude de silêncio sobre esses assuntos. Contudo, apesar dessa atitude, o ceticismo contribuiu significativamente para a tradição filosófica. Ao duvidar de toda e qualquer forma de empreendimento filosófico que apelasse para princípios e causas primeiras, o ceticismo manteve uma postura neutra de suspensão de juízos sobre todos os aspectos do conhecimento possível.
Quando se trata da origem do ceticismo grego, a primeira figura que ocupa a mente dos filósofos é a de Pirro e Élis (365-275) da qual surgiu, por exemplo, a expressão “ceticismo pirrônico”. Entretanto, o ceticismo na antiguidade clássica não se restringiu apenas a figura de Pirro. Isso, por sua vez, nos permite caracterizar ao menos três períodos do ceticismo clássico. No primeiro período teríamos, além de Pirro, a figura de seu discípulo Timon (320-230); no segundo período, conhecido como ceticismo acadêmico, as figuras de Arcesilau (315-240) e Carnéades (129-214); por fim, no terceiro período, Enesidemo (80-10); Agripa (1° séc. da era cristã) e Sexto Empírico (160-210). Como o título do texto indica, me ocuparei de Agripa, em particular, ao trilema atribuído a ele.
De Agripa, sua vida e produção filosófica sabemos muito pouco. Entretanto, ele se tornou importante porque lhe é creditado um trilema que coloca em xeque as pretensões de justificar o conhecimento. Seguindo a tradição de Enesidemo, Agripa introduz cinco argumentos que seriam uma espécie de continuidade dos argumentos de seu antecessor. Os argumentos de Agripa mostram que não temos e não podemos ter razões para acreditar em nada e, portanto, devemos abster-nos de qualquer crença. Enquanto que os argumentos de Enesidemo derivam da relatividade da percepção, os argumentos de Agripa derivam da estrutura do modo como justificamos uma crença. Com o passar do tempo esses argumentos foram sintetizados em três argumentos ao invés de cinco. Portanto, é a partir daí que surge o famoso trilema de Agripa.
Mas no que consiste este trilema? O trilema recai precisamente sobre o modo como nós justificamos aquilo que sabemos ou julgamos saber, em outras palavras, nossas crenças. Além do mais, nossas pretensões de conhecimento não podem ser tomadas como um falso conhecimento, isto é, quando justificamos alguma crença, o fazemos com o pano de fundo de que a crença em questão que estamos justificando é verdadeira. Portanto, essencialmente, o trilema de Agripa está se questionando se é possível provar alguma verdade; obviamente tal prova se dá através da justificação. A conclusão é que nenhum argumento pode ser provado porque estamos presos num labirinto de justificações que atendem apenas a três possibilidades fechadas: regressão ao infinito, circularidade e arbitrariedade. Veremos agora cada uma delas.
Regressão ao infinito. Aqui podemos formular a seguinte pergunta: como justificamos uma crença? Ora, recorrendo a uma outra crença, seria uma resposta adequada. Tudo bem, mas como justificamos a segunda crença que justificou a primeira? Novamente, recorrendo a uma outra crença e assim ad infinitum. Quem tem filhos ou contato diário com crianças já deve ter experimentado o regresso ao infinito quanto à justificação. Uma criança faz uma pergunta acerca do “por quê” de algo. Logo em seguida oferecemos uma resposta. De imediato, a criança pergunta “por quê”, e novamente respondemos. Se estivermos num dia no qual nossa paciência e bom humor estiverem renovamos, isso irá continuar indefinidamente até que um dos lados fiquem satisfeito ou cansado. Portanto, as respostas que seguem regredindo só existem por causa da resposta anterior, a cada “por quê” revela uma nova cadeia de justificações diante de nós.
Circularidade. A justificação por circularidade é também conhecida como um erro de raciocínio bastante comum. Em lógica informal essa falácia ganha o nome de petição de princípio (petitio principii). Nessa construção de uma justificativa circular teríamos a seguinte estrutura – “X é verdadeiro porque Y é verdadeiro; Y é verdadeiro porque X é verdadeiro”. Para ilustrar esse ponto vejamos o seguinte caso: tomando novamente crianças como exemplo, teríamos a seguinte asserção “O meu pai disse que mentir para as pessoas é algo ruim. Por que mentir para as pessoas é ruim? Porque o meu pai disse. Logo, mentir é ruim”. Neste caso, a crença de que “O meu pai disse que mentir é ruim” é usada para justificar a si mesma e nada acrescenta de novidade para as razões da justificação.
Arbitrariedade. Imaginemos a arbitrariedade como uma espécie de crença ou afirmação verdadeira que serviria de base para novos raciocínios e argumentos. A afirmação por si só não requer provas sendo por vezes, autoevidente ou autoexplicativa. Muitas vezes essas afirmações apelam para o nosso “bom senso” sobre determinadas coisas que, num primeiro exame, não parecem problemáticas. Por isso, esse bom senso demanda de nós que estejamos familiarizados com muitas das coisas à nossa volta, de modo que a percepção imediata que temos desses objetos, muitas vezes é um critério para estabelecermos um ponto de partida. Quando formulamos tais juízos com base nesse tipo de apelo, eles ganham um status axiomático. Imagine uma situação na qual alguém olha para as nuvens carregadas e escuras no céu, e afirma que irá chover. Essa crença de que irá chover é justificada pela presença de nuvens densas que indicam a possibilidade chuva. Outro exemplo bastante comum é no contexto religioso quando afirmamos uma série de coisas cuja a base ou o ponto de partida, que sustentam essas afirmações, seria Deus. “Por que o mundo existe? Porque Deus criou!” Na história da filosofia temos muitos exemplos de casos arbitrários de justificação. As vezes a arbitrariedade se manifesta em debates racionais quando fazemos apelo à certas autoridades: “Isso é verdadeiro porque a ciência provou ser verdadeiro”. O ponto é que quando ouvimos estas afirmações, estamos supondo que o que se segue, ou precedeu, é verdadeiro dado um conhecimento pré-existente que não demanda de nós qualquer outra prova.
Na epistemologia contemporânea, a regressão ao infinito é o principal problema no qual os filósofos tentam oferecer uma resposta que supere esse tipo de justificação. A circularidade ganha uma sofisticação mais elaborada conhecida como coerentismo epistêmico; por fim, a arbitrariedade nos é bastante conhecida pelo termo “fundacionismo epistêmico”. Portanto, isso significa que os ecos do trilema de Agripa ressoam até os nossos dias atuais de tal forma que não há como escapar dos ditames céticos estabelecidos desde a antiguidade clássica.