Cotidiano

Abandonado, Teatro Carlos Gomes serve de abrigo para desocupados e viciados

Enquanto a cena de abandono só piora a cada ano, Boa Vista continua sendo a única capital do país que não tem teatro

Há mais de 10 anos abandonado, o Teatro Carlos Gomes, localizado na Avenida João Pereira de Melo, no Centro de Boa Vista, virou alvo de furtos e abrigo para moradores de rua e viciados em drogas. Apesar de a Secretaria de Cultura do Estado (Secult) ter informado que está mantendo a limpeza do local, a equipe de reportagem da Folha foi ao local e constatou que toda a área está tomada por lixo e destroços da estrutura.

Infestado por fezes, lixo e mato, o patrimônio que um dia abrigou inúmeros artistas e fez história para uma geração, hoje é a imagem do abandono. Com a estrutura severamente corrompida, o teatro já teve as cadeiras levadas e perde diariamente o teto. No local há utensílios para uso de drogas, pedaços de roupa e papelão – aparentemente utilizados como cama.

Frequentadores da Igreja de São Sebastião, ao lado do teatro, informaram à Folha que, na manhã de quinta-feira, 12, um morador de rua saiu do Carlos Gomes com ripas de madeira do forro. As testemunhas disseram que a cena é repetida diariamente a qualquer hora do dia. À noite, ressaltaram que o lugar vira abrigo para sem-tetos e, principalmente, a usuários de droga.

Uma frequentadora da igreja disse que a capela passou a ser alvo de desocupados que ficam no teatro abandonado. “Já roubaram vasos de plantas, arrombaram o banheiro e até defecam ao lado da igreja. O problema é que não tem um muro para separar o teatro de nós”, lamentou.

Após ter optado não se identificar, ela disse que, apesar das câmeras e travas de segurança na parte de dentro, as portas e janelas têm marcas de tentativas de arrombamento.

Além dos artistas, diretamente afetados, o pedido de reforma já foi feito durante todos esses anos.

Pedidos e promessas para reforma vêm sendo feitos há mais de 5 anos

Em 2012, o Ministério Público do Estado de Roraima (MPRR), por intermédio da 2ª Promotoria de Justiça Cível, encaminhou notificação recomendatória à Secretaria de Infraestrutura do Estado de Roraima (Seinf), a fim de que fosse promovida, no prazo máximo de 30 dias, a finalização do projeto de restauração do Teatro Carlos Gomes, dando início imediatamente às obras.

Em março de 2015, após visita e elaboração de relatório, a Secretaria Estadual de Cultura (Secult) concluiu que era preciso fazer uma reforma geral. À época, conforme noticiado pela Folha, o então secretário Marcos Jorge relatou que eram necessários recursos federais para a obra, tendo em vista a situação financeira do Estado. No caso de não obter êxito, ele afirmou que seriam trabalhadas emendas parlamentares para a reforma geral do teatro em 2016.

Sete meses depois, em outubro de 2015, a governadora Suely Campos (PP) anunciou que deveria revitalizar o Teatro Carlos Gomes. O anúncio foi feito logo após a assinatura de decretos que regulamentavam leis de incentivo à cultura e preservação do patrimônio histórico do Estado. Ela ainda informou que o projeto de reforma estava em fase de aprovação no Ministério do Turismo.

LAMENTO – Uma artista, que optou por não se identificar, lamentou a situação do Teatro. “Tanto presenciei como atuei neste espaço. Tão importante por ser único. Mas é preciso ter esperança”, afirmou.

GOVERNO – Em nota, a Secult informou que, além de estar mantendo a limpeza, foi instalado cadeado no portão e tapumes nas portas. “Mas há, de fato, o problema recorrente de invasão do prédio. A Secult está trabalhando para colocar uma vigilância lá”, frisou. Também foi informado que o projeto de restauração está pronto e em fase de alocação de recurso. A obra tem custo de mais de R$ 1, 5 milhão. “A Secult se articula para captação de verba, a fim de realizar os trabalhos o mais rápido possível”. (A.G.G)

Cena de abandono se torna inspiração para peça teatral em Belo Horizonte

Ainda que o abandono do prédio tenha afetado os artistas locais, a atriz e produtora Cora Rufino utilizou o episódio como uma das inspirações para começar o espetáculo “Eat o Carlos Gomes”. O nome é uma espécie de brincadeira com o letreiro do teatro, que não tem mais as letras T e R. Residente em Belo Horizonte (MG), a roraimense contou que o fechamento do teatro foi um dos motivos para se despedir de Boa Vista.

O espetáculo mantém vários elementos autobiográficos, conforme Cora. Apesar de morar em Minas Gerais, ela aborda a identidade amazônica e as motivações que a fizeram ir embora. Entre os temas, o abandono é o central. Durante todo o ato, personagens e elementos retratam um pouco do que ela viu durante os anos em que morou em Boa Vista e pôde viver no Carlos Gomes.

A peça inicia com a personagem principal entrando no teatro abandonado, mas que tem pessoas vivendo. Artistas que não fazem mais peças, mas nunca saíram. Figurinos ainda são vistos, assim como baldes cheios de água das goteiras, forro caindo e mofo. O espetáculo termina com o velório do teatro, após se concluir que, infelizmente, não se pode fazer mais nada.

“Já ocupamos, já foram vivenciadas muitas fantasias, por mais que tenhamos recordações boas e tenhamos feito tudo, a última homenagem é o espetáculo e o velório”, explicou. Para ela, as esperanças já foram esgotadas. Em 2000, quando saiu da Capital, estava sendo inaugurada a pedra fundamental do Teatro Municipal da Prefeitura de Boa Vista. “Chamaram banda, imprensa, mas o que foi inaugurado – e até hoje – foi uma pedra”, criticou.

APRESENTAÇÃO – Cora Rufino apresentou seu primeiro espetáculo, O Pastelão e a Torta, no Teatro Carlos Gomes, em julho de 2005, com a Companhia do Lavrado. A partir dali, a vida profissional foi iniciada. Ela conta que, em uma das apresentações, pisou em um parafuso solto pelo palco. Em outra, a água da chuva caiu na plateia em razão das goteiras. Outra vez, a chuva da madrugada fez o forro da cabine técnica desabar. O teatro já estava ruindo.

“Eu considero o fechamento um tipo de censura aos artistas. Num lugar onde há um massacre em uma penitenciária, um lugar que não fomenta cultura, ele está sujeito a um povo desaculturado. O que esperar de uma cidade sem teatro? Onde não há cultura, a violência é o espetáculo”, destacou. Em Boa Vista, foram cinco anos trabalhando com teatro sem ter um. A criatividade então dá vez aos teatros de rua, biblioteca do Palácio da Cultura, praças da cidade, postos de saúde e auditórios.

ATRIZ – Cora Rufino é roraimense. Viveu no Estado por 24 anos. A paixão pelo teatro começou no ensino médio, no antigo Cefet e hoje IFRR, com o professor Chacon. Fez oficina com Kaline Barroso e com Marcelo Peres, da Companhia do Lavrado, onde participou por cinco anos. Junto a Francisco Alves, que também criou a Companhia do Pé Torto, diversas peças foram produzidas.

Começou a fazer Jornalismo e depois Arquitetura na Universidade Federal de Roraima (UFRR), mas desistiu de ambos e decidiu seguir a carreira artística, por ser o que mais gostava. Em 2011, fez vestibular para a Universidade Federal de Minas Gerais, onde está se formando. (A.G.G)