Cotidiano

Crianças venezuelanas passam a ser alvos de exploração e de abandono

Além de estarem sendo exploradas no mercado de trabalho, Conselho Tutelar já registrou casos de abandono de incapaz

Em razão da crise no país vizinho, o Estado de Roraima se tornou o destino de inúmeros venezuelanos que, sem condições de trabalho ou renda, fazem de tudo para conseguir o sustento familiar. Na pior das hipóteses, a responsabilidade em ajudar a garantir a renda para alimentação e moradia é dividida com crianças e adolescentes, que acabam perdendo a perspectiva de um futuro promissor por não frequentarem mais o ambiente escolar.

É o caso de um adolescente que trabalha para um casal de venezuelanos no bairro Buritis, zona Oeste. Conforme denúncia feita por uma mulher que preferiu não se identificar, ele trabalha atendendo mesas e assando carnes em um ponto de churrasco. Com base em dados do Conselho Tutelar municipal, de janeiro a agosto deste ano, cerca de 10 casos semelhantes já foram denunciados.

Conselheiro tutelar do Território 2, localizado no Terminal do Buritis, zona Oeste, Franco Rocha explicou que a legislação da Venezuela é diferente, mas que, a partir do momento em que estão no Brasil, as leis são claras. “Crianças indígenas e estrangeiras devem seguir a legislação e não devem trabalhar até os 14 anos. Ao atingir essa idade, o trabalho não pode ser degradante e nem realizado entre 18h e 6h”, disse. Segundo ele, o caso da denúncia é contra a lei.

O conselheiro relatou uma das últimas denúncias que recebeu em relação aos imigrantes. Uma mulher trouxe duas crianças para a Capital, uma de 6 e outra de 11 anos, para cuidarem do apartamento e fazerem o almoço enquanto ela se prostituía próximo ao Terminal do Caimbé. “Já se caracterizou abandono de incapaz e exploração do trabalho infantil e de risco. Nesses apartamentos minúsculos é um perigo acontecer algum acidente. As crianças são as primeiras vítimas dessa imigração descontrolada”, frisou.

Para resolver o assunto, o conselheiro precisou chamar um especialista em espanhol para falar com a mãe das crianças. Durante a conversa, ela comentou que veio por conta da crise, que resultou na falta de alimento.

Franco Rocha disse que a situação dos venezuelanos é complicada, uma vez que estão no País de forma irregular, o que já implicou no fato de as crianças estarem fora do ambiente escolar.

Além de as crianças terem sido encaminhadas a um colégio, pois, “independente da situação migratória, é um direito delas”, segundo o conselheiro. O caso foi encaminhado também aos psicólogos e assistentes sociais do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) para acompanhar a família e até ajudarem a mãe a conseguir um emprego, a fim de que ela possa oferecer melhores condições às filhas.

Em outro caso que ele trabalhou, Rocha disse que precisou colocar uma criança com menos de 02 anos idade em um abrigo na cidade. “A mãe foi localizada com posse de drogas com mais quatro pessoas e o delegado disse que ela ia ser flagranteada por tráfico”, explicou. Pela falta de familiares na Capital, o conselheiro tutelar não teve outra saída. “As nossas medidas se resumem a aplicar segurança para esses menores de idade”, ressaltou.

DENÚNCIA – A pessoa que souber de alguma informação sobre trabalho infantil ou qualquer outra circunstância que envolva crianças e adolescentes deve entrar em contato com o Conselho Tutelar de Boa Vista pelos números 3624-2788, 3224-4664 e 3627-8909 ou pelo 190. Para o conselheiro, é importante o assunto ser explorado para que o Juizado da Criança e do Adolescente e os demais órgãos envolvidos possam estar atentos, assim como os próprios conselheiros e a população.

Segundo ele, o Estatuto da Criança e do Adolescente diz que o dever de proteger os menores é da família e de toda a sociedade, assim como a obrigação de denunciar e passar endereços ou locais próximos aos órgãos responsáveis é de suma importância para a realização dos procedimentos necessários.

Conforme Rocha, o trabalho é dificultoso, uma vez que o próprio Consulado deveria reunir as famílias para legalizá-los e assim poderem ficar no Estado pelo menos até a crise diminuir. “Mas estão entregues ao abandono. Parece que as próprias autoridades responsáveis por encaminharem elas ao consulado não ligam”, frisou. O conselheiro afirmou que não tem sentido ignorar a fome e as circunstâncias desagradáveis que os imigrantes estão passando.

Mais de 20 crianças e adolescentes foram afastadas de trabalho irregular pelo SRTE

Segundo o auditor fiscal da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego em Roraima (SRTE-RR), Maurício Fagundes, em Roraima, apenas oito auditores fiscalizam todas as formas que possuem uma relação de emprego, como comércio, indústria, construção civil, trabalho rural e aprendizagem, incluindo o trabalho infantil, que às vezes está relacionado à própria família. Este ano já foram realizadas 57 ações fiscais no combate ao trabalho infantil, sendo afastadas mais de 20 crianças e adolescentes das condições.

O auditor ressaltou que o trabalho é proibido para menores de 16 anos, com exceção na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos. Para os maiores de 16 anos e menores de 18, é proibido o trabalho noturno, perigoso ou insalubre. Além disso, no decreto número 6.481/2008 do Poder Executivo Federal, também chamado de Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP), há 93 atividades proibidas para os menores de 18 anos.

“A lista é extensa, mas infelizmente precisou ser elaborada para combater o trabalho infantil em todo o mundo, e desde o ano 2008 essa lista se incorporou à legislação brasileira e é aplicada pelos auditores fiscais do trabalho”, relatou. Fagundes informou que no caso de exploração de trabalho infantil proibido no âmbito familiar, o responsável poderá ser autuado pela fiscalização.

Já no caso de prestação de trabalho por crianças para terceiros, a criança ou o adolescente é afastado do trabalho, mas, caso possua idade para trabalhar, sendo maior de 16 anos, a função é alterada para outra que não o exponha aos riscos elencados na Lista TIP. Se a mudança não for possível, por falta de função ou por falta de idade mínima para trabalhar, o empregador deve efetuar a rescisão do contrato de trabalho perante a um auditor fiscal do trabalho, com o pagamento das verbas rescisórias na presença do responsável pela criança, além de ser autuado.

“Infelizmente, muitas pessoas não entendem que o período da infância deve ser destinado aos estudos, ao aprendizado para a vida, a ensinar às crianças valores de uma vida em sociedade, o que não quer dizer que as crianças não possam realizar nenhum tipo de trabalho”, lamentou. O auditor disse que faz parte do aprendizado e da integração com a família a execução de certas tarefas domésticas. O que é combatido é a exploração do trabalho infantil, que retira da criança o tempo aos estudos e ao lazer.

Em casos de miséria e pobreza, como é o caso atual da Venezuela, a iniciação precoce do trabalho não resolve o problema, e sim impede os órgãos responsáveis de verem a realidade de forma mais ampla. “A partir do momento em que os necessitados sejam atendidos por meio de programas sociais de governo e políticas públicas efetivas nas áreas da cultura e da educação alcancem as crianças em situação de vulnerabilidade, poderemos vislumbrar um futuro em que o trabalho infantil não mais exista”, frisou. (A.G.G)

Vara da Infância fiscaliza crianças pedindo esmolas

Por meio da Divisão de Proteção da Primeira Vara da Infância e Juventude da Comarca de Boa Vista, o Tribunal de Justiça de Roraima (TJRR) vem realizando, desde a manhã de ontem, 28, uma operação com a finalidade de coibir a presença de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade.

Conforme a chefe da Divisão de Proteção, Lorrane Costa, os trabalhos foram iniciados após o recebimento de uma série de denúncias, principalmente referentes aos indígenas venezuelanos em comércios, semáforos e locais com grande concentração de pessoas na Capital.

“As denúncias nos levaram a ir aos locais, então tivemos a ideia de catalogar cada família para as conhecermos. Estamos fazendo a primeira abordagem. Notificamos, instruímos e catalogamos com dados e fotos para trabalharmos a conscientização dessa população. Caso reincidam, teremos que levar as crianças para o abrigo, mas esse não é o alvo. O principal é a instrução para que não reincidam em tal transgressão. Esse catálogo vai mostrar o índice de reincidência de cada responsável”, afirmou.

A coordenadora explicou que o catálogo é a identificação de cada membro, dos responsáveis por essas crianças e que primeiramente está sendo feito um esforço concentrado para orientá-los, pois existe uma barreira linguística grande, já que não falam português e raramente falam espanhol.

O objetivo é que eles tenham ciência da legislação brasileira e as consequências da prática da mendicância com uso de crianças e adolescentes, esclarecendo que a reincidência levará as crianças ao abrigo.

“Estamos com a esperança de que eles compreendam as orientações. A Polícia Federal faz a deportação, mas estamos percebendo que não está surtindo o efeito esperado. Sabemos que retornam meses depois. Então resolvemos trabalhar a consciência de cada um deles”, completou a servidora.

Ao final das ações, será emitido um relatório pela unidade e encaminhado para o juiz da Vara da Infância, Polícia Federal, Ministérios Público do Estado e Ministério Público Federal e para os Conselhos Tutelares da Capital.

Lorrane afirmou que está em trâmite uma parceria com o Centro de Referência de Assistência Social (Creas) para garantir o melhor acompanhamento dessas famílias. Na próxima diligência, eles irão participar com a equipe da Divisão de Proteção.