Cotidiano

Famílias que vivem no lixão catam comida estragada para se alimentar

Condição de centenas de famílias é subumana e até crianças disputam espaço com os urubus no lixão onde deveria ser um aterro sanitário

Alimentos descartados no aterro sanitário de Boa Vista, que já se transformou em um lixão a céu aberto, estão sendo consumidos por catadores de lixo. Os próprios catadores confirmaram a denúncia. Mais de 200 famílias voltaram a armar barracos nas imediações da lixeira pública de Boa Vista, na saída de Boa Vista no sentido sul da BR-174, conforme noticiou ontem a Folha.

 Essas famílias sobrevivem com o pouco dinheiro arrecadado com a venda de materiais recicláveis que catam. A maioria das crianças, filhos dos catadores, ajuda os pais no penoso trabalho. Essas pessoas vivem em uma situação de pobreza extrema, morando em casas de chão batido, cobertas com lona ou papelão. No entanto, em meio às dificuldades, os catadores alegam que gostam do que fazem e que dá, segundo eles, para viver do lixo, apesar do iminente risco de contaminação. O maior medo que eles têm é que a prefeitura os retire do local.

“Não tem trabalho aí fora e o que ganho aqui dá para sobreviver. Sustento meus seis filhos. A vida aqui é difícil, mas a gente logo se acostuma com o fedor. Começo de manhã cedo e paro só no final da tarde. O material que cato eu vendo para a cooperativa”, relatou a catadora Maria das Graças de Almeida, de 40 anos.

Em média, cada catador faz até R$ 80,00 por dia. Ontem à tarde, Maria José, de 59 anos, fazia uma busca solitária pelos objetos que a ajudam a sustentar os cinco netos que cria. “Recolhemos vidros e todo material reciclável que é plástico, além de papelão. Aqui a gente também encontra roupas, calçados e até comida”, comentou.

Dona Maria é mais uma moradora do lixão. É gente trabalhadora, mas esquecida pelo poder público. “Os políticos só nos procuram em tempo de eleição. Depois a gente não existe. Só peço a Deus que continue me dando forças para eu ganhar o pão de cada dia”.

O caminhão que faz o despejo do lixo recebe o auxílio dos catadores, que fazem até fila para pegar os melhores sacos. Como não há fiscalização do que vem parar no local, o lixão se torna um grave problema de saúde pública. Já houve acidentes graves e até mortes no local.

“Este ano mesmo um colega nosso ‘marcou’ e foi atropelado pelo carro de lixo. O motorista deu ré e passou por cima dele. Morreu aqui mesmo. Muita gente se corta aqui catando vidro ou lata. Os meninos pegam seringas para brincar. Vem até lixo de hospital para cá”, denunciou um catador, que preferiu não se identificar.

A lei federal é bem clara. Os lixões já não deveriam mais existir. Só que, em todos os municípios de Roraima, essa imagem desumana ainda é realidade. Na Capital, entre montanhas de lixo, os catadores disputam cada saco despejado pelos caminhões coletores. Ninguém usa equipamentos de proteção. E não é só adulto. A Folha flagrou ontem à tarde várias crianças catando lixo.

O catador Leôncio Souza Silva, de 32 anos, ex-ajudante de pedreiro, revirava os entulhos ontem à tarde junto com o filho, de 11 anos. “Ele vem de vez em quando me ajudar, mas está estudando”, justificou o pai.

Para escapar do sol escaldante, o menino de aparência abatida descansava ontem à tarde debaixo de um dos inúmeros barracos armados em cima da lixeira pública. Passava das 15h e a criança ainda não havia almoçado. O pai disse que sempre faz refeições no lixão e que trás a comida já pronta.

Mas dezenas de pessoas catam no lixo restos de comida, principalmente carnes, provavelmente descartadas de açougues ou mesmo clandestina. Eles penduram os pedaços em varais e esperam o sol secar. As crianças vigiam para que os urubus fiquem longe. Depois, fritam e comem. (AJ)
 
Igarapé Wai Grande está desaparecendo

O lixão fica a menos de cinco quilômetros do Centro, bem próximo do Conjunto Pérolas do Rio Branco, no bairro Airton Rocha, o último da zona Oeste de Boa Vista. Dezenas de famílias também armaram barracos às margens do igarapé Wai Grande, que passa ao redor da lixeira pública. Ontem à tarde, vários meninos tomavam banho no igarapé, visivelmente poluído.

No leito do igarapé havia muito lixo: sacos, latas, garrafas e até a carcaça de um fogão. A água estava turva e fedida. Catadores falaram que usam a água apenas para cozinhar, mas garantiram que não a bebem. A história de alguns chega a ser comovente. É o caso de seu Júlio, de 58 anos, doente.

“Não tenho filhos, nem onde morar. Aqui montei meu barraco e sobrevivo do lixo. Cato material reciclável e vendo. Mas a vida não é fácil. Sou um homem doente e não sei até quando terei força para trabalhar”, lamentou o catador, que não disse qual era a sua doença.

Femarh – O diretor presidente da Fundação Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos de Roraima (Femarh/RR), Rogério Martins, explicou à Folha, ontem à tarde, que a área da lixeira pública, por onde passa o igarapé, é de responsabilidade do município. Portanto, segundo ele, a fiscalização cabe à Secretaria Municipal de Gestão Ambiental.

Mas, se a secretaria não tomar providências, ele disse que a Femarh poderá agir. “A partir da denúncia, se o órgão municipal não tomar providência, vamos agir. Iremos mandar uma equipe ao local verificar a origem da poluição e, depois de identificado o responsável, aplicaremos a lei de crimes ambientais”, frisou.

Prefeitura diz que famílias de catadores trabalham com segurança e dignidade

A Prefeitura de Boa Vista informou, por meio de nota, que o serviço de administração do Aterro Sanitário é terceirizado e a responsabilidade é da empresa contratada, a Sanepav. Dentro das atribuições, o município afirma que mantém parceria com a cooperativa dos catadores da Unirenda, “onde existem catadores cadastrados para realizar o seu trabalho com segurança e dignidade”.

A questão, segundo a Prefeitura, já foi alvo de recomendações do Ministério Público Federal que pede que sejam retiradas as famílias, mas, após a retirada, elas voltam para o local, mesmo sem a autorização da empresa responsável pelo aterro.

A nota informa ainda que possui um programa de monitoramento, que é feito a cada seis meses no local. É feita a coleta da água em dois pontos, acima e abaixo do aterro. As amostras são enviadas para um laboratório em São Paulo, pois na região não foi encontrado nenhum laboratório que fizesse análises de parâmetros de metais pesados.

Esclarece ainda que esse monitoramento é feito desde 2015 e que não consta nenhuma contaminação de chorume no igarapé Wai Grande. Todos os relatórios são encaminhados e acompanhados pela Secretaria Municipal de Gestão Ambiental e Assuntos Indígenas.

No caso da presença de crianças no aterro sanitário, a Secretaria Municipal de Gestão Social diz que faz o acompanhamento e o encaminhamento para que as mães busquem as unidades educacionais e de saúde – quando necessário – porém, quando voltam ao aterro, elas não cumprem a orientação. “Vale salientar que as crianças estão fora das escolas não por falta de vagas nas unidades educacionais e que algumas famílias usam a mão de obra infantil para fazer a coleta”, destacou.

A Prefeitura de Boa Vista não se exime de sua responsabilidade e para tal já foi feita a licitação do Plano de Resíduos Sólidos do município, e que em função do período eleitoral somente poderá dar a ordem de serviço após a conclusão do pleito. Nesse plano contempla a coleta seletiva e destinação correta dos tipos de lixo, como também a incineração do lixo hospitalar e a construção de um novo aterro sanitário dentro dos mais modernos padrões mundiais.