Cotidiano

PF é acionada para investigar servidores da Funai e advogados de indígenas

O ofício da Funai foi enviado em novembro de 2020 ao então diretor da PF, Rolando Souza, e o inquérito foi aberto no último dia 12 de maio pela PF no Amazonas

O presidente da Funai (Fundação Nacional do Índio), o delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier, acionou a PF contra o líder indígena Mário Parwe Atroari, duas organizações indígenas waimiri-atroari, nove servidores da própria Funai e advogados dos indígenas. A alegação é que há “entraves e óbices” à construção da linha de alta tensão Manaus-Boa Vista. O ofício da Funai foi enviado em novembro de 2020 ao então diretor da PF, Rolando Souza, e o inquérito foi aberto no último dia 12 de maio pela PF no Amazonas.

A obra do linhão é frequentemente citada pelo presidente Jair Bolsonaro em seus discursos e lives com distorções sobre a posição dos indígenas e a sugestão de que são os responsáveis pelo atraso do empreendimento. Os waimiris-atroaris e o Ministério Púbico Federal já recorreram ao Judiciário para pedir um direito de resposta contra os discursos de Bolsonaro e outros membros do governo, sem sucesso. Segundo os indígenas e o MPF, o discurso de ódio joga a população de Roraima contra os indígenas.

O delegado da PF que abriu o inquérito na Superintendência do Amazonas, Eduardo Zózimo de Andrade Figueira Neto, pediu a “qualificação” e “os RIFs” das pessoas e associações alvos da presidência da Funai, incluindo a ACWA (Associação Comunidade Waimiri-Atroari) e a Adawa (Associação de Apoio às Atividades do Programa Waimiri-Atroari). Embora não fique claro na portaria, os RIFs são os Relatórios de Inteligência Financeira produzidos pelo Coaf, unidade de inteligência financeira do Ministério da Economia, a partir de movimentações bancárias. 

Entre os servidores colocados por Marcelo Xavier como alvos da PF estão indigenistas com larga experiência e grande respeito entre os servidores da Funai pelo histórico de defesa dos povos indígenas. Outro mencionado no ofício do presidente da Funai, o advogado Jonas Carvalho há anos atua como defensor jurídico dos waimiris-atroaris. Xavier escreveu que ele teria “ascendência” sobre o líder indígena Mário Parwé.

“O que me admira nessa história toda é o presidente da Funai, que tem a obrigação constitucional de defender os indígenas pelo cargo que ocupa, agir contra um indígena, o líder Mário Parwé, e as organizações indígenas. Vou pedir ao Ministério Público que analise uma possível denúncia contra o presidente da Funai porque sua função é defender o índio e não ser contrário ao índio. Colocar que tenho ‘ascendência’ sobre um líder indígena é inadmissível. Como se os indígenas não soubessem seus direitos e não tomassem suas próprias decisões. Sou advogado dos waimiri-atroari, o que eles decidem, eu coloco na parte jurídica, tão somente isso.”

É a terceira vez que a presidência da Funai investe contra líderes indígenas no país por meio da Polícia Federal. Os dois primeiros casos – contra a líder indígena Sonia Guajajara e a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e o líder Almir Suruí – já foram arquivados no último dia 5 de maio.

Ao arquivar a investigação pedida por Xavier contra as organizações suruís de Rondônia, a PF disse que não havia elementos mínimos para dar início a uma investigação. O Ministério Público Federal chegou à mesma conclusão ao pedir o trancamento do inquérito que investigava Sonia e a APIB.

A portaria do terceiro inquérito foi assinada no dia 12 de maio – portanto uma semana depois do arquivamento dos inquéritos anteriores – pelo delegado da PF Figueira Neto. Ele partiu de um ofício enviado por Marcelo Xavier que conteria supostos “indícios de entraves e óbices por parte de servidores, bem como de agentes ligados a Associação Comunidade Waimiri Atroari-ACWA, em processo de licenciamento ambiental, no que se refere ao componente indígena, relativo ao Linhão do Tucuruí”.

Quando Xavier encaminhou seu ofício, em novembro de 2020, o diretor da PF era Rolando Souza. Em abril ele deixou o cargo, substituído pelo delegado Paulo Maiurino. Os arquivamentos ocorreram já na nova gestão da PF.

O ofício da Funai referido pelo delegado distorce todo o longo processo de licenciamento da obra. De acordo com a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), da qual o Brasil é subscritor, deve haver uma consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas antes de qualquer ação que promova degradação ambiental nas terras indígenas ou qualquer outro tipo de impacto na vida das comunidades indígenas.

O governo brasileiro pretende construir uma linha de alta tensão que atravessará mais de 120 km dentro da Terra Indígena Waimiri-Atroari, nos Estados de Roraima e Amazonas, implicando na construção de aproximadamente 250 torres de energia elétrica, grande movimentação de maquinário e operários, agravantes para a disseminação do novo coronavírus. É nesse contexto que os indígenas desenvolvem uma negociação com o governo brasileiro, o que já foi admitido pela própria Funai inúmeras vezes.

Em um texto divulgado em 2019, por exemplo, a Funai disse que o presidente do órgão, Marcelo Xavier, esteve na Terra Indígena Waimiri-Atroari, “respondeu a todas as perguntas e reafirmou o compromisso de levar adiante o licenciamento ambiental da Linha de Transmissão Manaus-Boa Vista, respeitando o protocolo de consulta elaborado pelos indígenas e aguardando o tempo necessário para a análise do PBAI (Plano Básico Ambiental Indígena), que foi traduzido para a língua indígena, de forma que os representantes Waimiri-Atroari possam analisá-lo com calma”.

Segundo o texto da própria Funai, “com a entrega do PBAI devidamente lido pelos indígenas, o processo de licenciamento terá prosseguimento com novas etapas, que deverão culminar com a manifestação final dos indígenas sobre as medidas propostas de compensação e mitigação presentes nesse documento e, por fim, será agendada uma nova visita do presidente e demais representantes à aldeia para ouvir as manifestações dos indígenas”.

O texto da Funai é de setembro de 2019. O ofício de Marcelo Xavier foi enviado à PF para investigar os indígenas apenas um ano e dois meses depois, em 19 de novembro de 2020.

Fonte: Rubens Valente / UOL