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Mazzaropi, 110 anos: filmes celebram o riso e a

O multiartista paulista Amácio Mazzaropi morreu aos 69 anos de idade

Sala escura. De repente, a telona ilumina-se. O projetor joga a luz em preto e branco e sonhos. Nas poltronas, o público aguardava ansioso. Mais ansioso ainda, de forma anônima e escondido entre as fileiras da sala, uma pessoa esperava e anotava as reações. Uma por uma. Só relaxava mesmo quando ouvia o som preferido… o sorriso. Mais do que isso: gargalhadas, e que faziam o público pensar. 

O multiartista paulista Amácio Mazzaropi (1912 – 1981), que nasceu há exatos 110 anos e dedicou a vida à arte, fazia de tudo: atuava, dirigia, escrevia, produzia, cantava… e marcou o nome na história da cultura brasileira ao projetar o homem caipira do interior de São Paulo (que poderia ser de qualquer canto do país), de uma forma perspicaz, com comédia e crítica, usando e abusando de aparentes contrastes. Ingenuidade e sagacidade, ou  ternura e esperteza, simples e complexo.

Foram 32 filmes (feitos em 28 anos, de 1952 e 1980), com uma média impressionante de mais de um longa-metragem por ano. Antes do cinema, trabalhou no circo e no teatro. Como cineasta, trabalhou com a Companhia Vera Cruz e depois fundou a própria empresa Produções Amácio Mazzaropi (PAM Filmes).

“A proposta dele era fazer as pessoas rirem. Era pra isso que ele fazia cinema. Ele ia nos próprios filmes dele sem que ninguém soubesse para saber quais elementos despertavam o riso na plateia. Aí ele repetia em outros filmes”, afirma a historiadora Soleni Fressato, que é professora da Universidade Federal da Bahia. Ela escreveu o livro “Caipira sim, trouxa não”, sobre a obra de Mazzaropi, a partir da sua tese de doutorado.

O “Jeca” que ninguém consegue passar para trás atrai a atenção de pesquisadores da arte brasileira, e também continua encantando o público. A TV Brasil, da EBC, mantém em sua grade semanal os filmes do cineasta, no Cine Mazzaropi, atualmente com exibições às quartas e sábados.

Para a pesquisadora Soleni Fressato, um dos segredos da atenção e do sucesso permanentes tem relação com a valorização da vida simples e dos sentimentos humanos, pelo caminho da comédia. Além do riso para descontrair, a pesquisadora entende que ele guardava espaço especial para questionamentos. “Entre as décadas de 1950 e 1970, de avanço da industrialização no Brasil, ele valoriza o meio rural. O caipira que ele representa sai desse meio rural e vai pra cidade e ele não se transforma na cidade. Ele continua com seus valores caipiras e isso que dá força pra ele enfrentar a vida urbana”.

Valor do campo

Ao analisar os filmes do artista, a pesquisadora identifica que há a valorização de um camponês que transita entre a subordinação e a transgressão. “O sorriso no cinema de Mazzaropi vai até contra os padrões estabelecidos porque ele resistia às imposições”. Deboches por um riso que surge ambivalente (espalhafatoso e que mexe com as ideias do público). 

Inclusive, a pesquisadora acrescenta que outro segredo é que o indivíduo caipira é um símbolo conhecido na arte nacional, também na literatura, nas artes plásticas, na música desde o século 19. “Mazzaropi colocava a modernidade em xeque. O personagem não é nada ingênuo. Na verdade, é  sempre o mais esperto e utiliza essa esperteza para escapar, como uma forma de resistência para escapar da subordinação. Ele revela nessa ingenuidade dele e até infantilidade porque ele compreende muito bem os jogos de poder”.

Entre as obras que a pesquisadora aprofundou o olhar, estão Jeca Tatu (1959) e Tristeza do Jeca (1961), em que as narrativas abordam, por exemplo, como o camponês resistia às práticas coronelistas e às adversidades no campo. Do período da Chanchada, a professora cita obras como Chico Fumaça e Chofer de Praça  (ambos de 1958), em que o caipira sai do meio rural e vai pra cidade.

“São filmes muito bacanas pra você pensar como o caipira utiliza os próprios códigos dele para não ser ludibriado no meio urbano. É um momento muito especial para ele porque era o ator, o diretor, o roteirista, o produtor. Então ele era livre para fazer o que ele queria na verdade”.

Período de ouro

Ele fez sucesso de bilheteria, que não é pouco, mesmo para os padrões de hoje. Nos anos 1970, por exemplo, com cinco filmes, ele teve um público de mais de 13 milhões de pessoas. “O que torna o feito ainda mais impressionante é que ele, quando lançava um filme, tinha no máximo dois rolos: o original e a cópia. A película era muito cara. Ele não tinha a possibilidade de fazer cópia de distribuição que hoje tem uma grande produtora no Brasil. E mesmo assim ele conseguia atingir um público muito grande”, detalha Soleni Fressato.

Nos anos 1950, quando Mazzaropi começou a produzir cinema, há um maior investimento nessa arte, com equipamentos mais sofisticados, contratação de atores, uma experiência de indústria. A televisão chegava ao Brasil também, e a rádio continuava sendo o meio mais popular. “Ele chamava cantores que faziam sucesso no rádio para cantar nos filmes dele. Assim as pessoas conheciam visualmente aqueles artistas”, explica a historiadora.

Mazzaropi vivo

A trajetória singular de Amácio Mazzaropi pode ser visitada no museu, na cidade de Taubaté (SP), que leva o nome do artista. O curador do espaço cultural, Claudio Marques, testemunha que quando as pessoas vão ao museu, se emocionam demais ao relembrar momentos que trazem lembranças de suas vidas.

 O curador entende também que, com o uso do humor e da ironia, ele continua tocando as pessoas ao tratar de temas que vão muito além do tempo em que ele viveu e produziu. “Ele tratava de racismo, por exemplo. e também da questão do opressor e do oprimido.

Uma das razões do sucesso é que o público se sente com a alma lavada se saindo bem em relação aos opressores”. Outro tema que o curador cita é a atualidade ao tratar da questão ambiental, da deterioração dos rios, por exemplo. “Tudo continua ainda em voga”.
 

Multidão

A obra de Mazzaropi provoca curiosidade e encanta brasileiros de diferentes faixas etárias, e não apenas os mais velhos, como alguém pode supor. O universitário (de engenharia agronômica) Derick Christian, morador da cidade de São Sebastião do Paraíso (MG), é administrador de um grupo no Facebook com mais de 441 mil integrantes.

A paixão dele pelo artista começou em 2019 depois de comprar alguns DVDs antigos para presentear o pai. Mas foi o filho que se encantou primeiro. “Aí comprei a coleção toda (dos 32 filmes)”. O fã tem uma obra favorita, O Jeca e a Freira (de 1967).

 “O Mazzaropi encanta desde a criança até o idoso. No grupo, a gente troca reportagens, trechos de filme, a programação da TV Brasil que a gente coloca quase diariamente no grupo informando os horários de exibição. Até hoje, ele arrasta multidões. Igual, como antigamente, ele arrastava pro cinema”.

O universitário vibra com a organização das cenas e a magia do cinema. “Em  uma cena, ele estava ali na fazenda. Na outra, na igreja. Então a pessoa imagina aquele universo como um só”. Universo que rodeia os fãs e está na praça da cidade. “A gente enxerga ele nas pessoas da cidade, nos vizinhos mais antigos. Mazzaropi está muito vivo em tudo que a gente vê hoje em dia”, garante.

Fonte: Agência Brasil