OPINIÃO

A cultura patriarcal e a cultura do feminicídio

Sebastião Pereira do Nascimento*

“… Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos como ao Senhor. Porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o salvador do corpo. De sorte que, assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres sejam em tudo sujeitas a seus maridos” (Efésios 5:22-23).

Como podemos perceber nos cânones bíblicos semeados tradicionalmente na nossa cultura, o sistema de ordem reinante entre a sociedade é o do patriarcado, o que significa que a figura do homem é enxergada como um indivíduo detentor de domínio sobre a mulher. Um sistema de domínio que não traz prejuízos apenas para as mulheres, mas para toda a sociedade.

Diante desse cenário machista, tanto a incompreensão religiosa quanto as questões de ordens socioculturais na sociedade suscitam formas distintas de violência de gênero, que não se limitam apenas à questão moral, mas também aos atos odiosos de violências que vão desde assédios sexuais, psicológicos, emocionais, patrimoniais, financeiros até agressões físicas e feminicídios. Enraizada e apoiada no patriarcado, os abusos e a violência contra a mulher estão sempre presentes em diferentes contextos, tanto no espaço público quanto na vida privada, em geral, praticada por pessoas que a mulher conhece: pessoas com quem ela convive, se relaciona ou se relacionou.

Todas essas situações ocorrem principalmente por conta de uma visão distorcida do homem em relação à mulher e à posição que ela ocupa na sociedade. Na história ocidental, homem e mulher têm papéis assimétricos. A sociedade moderna — que antes de tudo é machista, sexista e misógina — admite que o homem é o provedor financeiro e social da família, enquanto a mulher é submissa e não provedora. Da mesma forma, a sociedade acredita que o homem é um sujeito dotado de fortaleza e independente da mulher, enquanto a mulher é frágil e dependente do homem, que pode tomar decisões por ela, violando suas escolhas e seus desejos femininos. 

Em particular, aqui no Brasil, não é raro às vezes em que essas violações resultam em grave violência contra a mulher, tanto por parte do homem delituoso quanto, muitas vezes, por parte da sociedade e do próprio Estado. Por exemplo, quando um ente público nega os direitos da mulher ou deixa de apenar o homem quando ele comete algum agravo contra ela. Algo que traduz a expressão de valores de uma sociedade patriarcal, autoritária e arcaica, que mata as mulheres apenas porque elas querem ser o que são: donas de sua vida.

Assim, sob a luz dessa expressão, muitas mulheres continuam sendo abusadas e assassinadas todos os dias por homens providos de “superioridade” e de sentimento de posse, que não aceitam “perder” a mulher como se ela fosse um objeto de sua propriedade, fazendo sempre o que ele quer. Homens que não permitem que a mulher possa romper barreiras (quebrando paradigmas socioculturais) e ir além do seu tempo, conforme seus próprios desejos e sua capacidade de ação e reação.

Dados recentes divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) revelam que, entre 2015 e 2023, quase 10,7 mil mulheres foram vítimas de feminicídios no Brasil — assassinatos de mulheres praticados em contexto de violência doméstica, familiar ou íntima de afeto, ou ainda provocados pela discriminação, ou menosprezo à condição do sexo/gênero feminino. Em 2023, o FBSP mostra que o Brasil bateu novo recorde de feminicídios, com 1.463 mulheres assassinadas pelo simples fato de serem mulheres, sendo uma média de 1 mulher morta a cada 6 horas (alta de 1,6% em relação a 2022, com 1.437 mulheres mortas). É o maior número já registrado no país desde que a lei do feminicídio entrou em vigor em 2015. Mato Grosso continua sendo o estado com a maior taxa de feminicídio, com 2,5 mulheres para 100 mil. Ainda segundo o Anuário de Segurança do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), oito em cada 10 casos de feminicídio são cometidos pelo parceiro ou ex-parceiro da vítima.

Em face desse cenário, apesar das mulheres terem mais acesso às informações sobre as mais variadas formas de violência, além da existência de diversos mecanismos especializados no combate à violência contra a mulher, há ainda certa dificuldade da sociedade em aceitar muitos atos invectivos contra mulheres em situação de violência doméstica, o que dificulta para a vítima uma tomada de decisão célere ou registrar um boletim de ocorrência, até mesmo pelo medo ou pela vergonha do julgamento da sociedade. No caso dos setores de atendimento à saúde da mulher violentada, tem acontecido com muita frequência a demora de reconhecer e lidar com esse tipo de violência.

Ainda hoje vivemos numa sociedade impregnada de cultura machista, onde a dominação das mulheres pelos homens é vista como algo natural. É como se a mulher não tivesse o direito de ser livre. Todavia, é preciso a sociedade entender que quando há um homem dominador, violento ou abusivo, a mulher não é obrigada viver debaixo dessa opressão. Como exemplo, ao se tratar de marido e esposa, a mulher tem todo direito de se defender e rejeitar as atitudes erradas do homem, a qual deveria receber todo apoio da sociedade, porque a culpa não é dela. E para esse homem que abusa da falsa autoridade matrimonial, ele precisa mudar de atitudes, senão ele vai continuar destruindo a mulher, a família e a si próprio.

Com base nisso, sabemos que, além da crença religiosa (que coloca a mulher submissa ao homem), existe a doutrina patriarcal (fortemente arraigada na sociedade), onde o homem pensa a mulher como um objeto, algo de propriedade dele. No entanto, nenhuma mulher deve estar sujeita à servidão de um homem, nem viver um relacionamento tóxico, destrutivo e humilhante. A mulher merece ser respeitada, do mesmo modo que é concedido o respeito ao homem em todos os sentidos. Para mais, é urgente que a sociedade dissolva de si essa cultura imoral do patriarcado e vislumbre todos os esforços possíveis no intuito de destituir a dominação dos homens sobre as mulheres. Isso tudo como forma de não assistirmos, em pleno século XXI, à atitude primitiva de um homem matar uma mulher só porque é mulher.

*Filósofo, escritor e consultor ambiental. Autor dos livros “Sonhador do Absoluto” e “Recado aos Humanos” (Editora CRV). Coautor dos livros “Pandemia: Poemas, Contos e Microcontos” (Editora da UFRR) e “Vertebrados Terrestres de Roraima” (BGE).