OPINIÃO

A derrocada das escolas cívico-militares

Sebastião Pereira do Nascimento*

A ideia de transformação humana através da educação, como proponha o educador Paulo Freire, não se dar apenas na escola formal, mas também a partir da possibilidade de ir a outras pessoas, conviver com elas, aprender com elas e interrogar o que elas sabem. Daí não se pode duvidar de que conhecemos muitas coisas devido às práxis humanas, todavia, é preciso ir mais além, para conhecer melhor as coisas que já conhecemos e conhecer outras que não conhecemos.

Rousseau, também, compartilha da mesma ideia quando coloca que “nascemos fracos, precisamos de força; nascemos desprovidos de tudo, temos necessidade de assistência; nascemos estúpidos, precisamos de juízo. Tudo o que não temos ao nascer, e de que precisamos quando adultos, é-nos dado pela educação. E essa educação nos vem da natureza, da interação social, da mediação de parceiros mais experientes e das relações frente a frente que estabelecemos com o outro”.

Outro educador, Jacques Delors, diz que aprendizagem significativa está estreitamente relacionada com os pilares da educação, que passa por um processo de apropriação ativa do conhecimento das experiências humanas, que impulsiona de forma não linear o desenvolvimento, promovendo a análise de conceitos, esclarecendo significados, elaborando hipóteses e verificando a validade dos processos de raciocínio. Processo esse pelo qual o sujeito adquire informações, habilidades, atitudes e valores a partir de seu contato com diversas realidade e com as diferentes pessoas que participam de sua interação social.

Portanto, contrariando esses conceitos de uma saudável educação, foi instituído em 2019, por meio do Ministério da Educação, com o apoio do Ministério da Defesa, o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares – PECIM. A iniciativa tinha como propósito apresentar um sistema de gestão na área educacional, nutrido pelo desejo de constituir um reacionário modelo nacional de educação, com base na concepção de escolas restritas ao reduzido mundo do ensino cívico-militar.

Com uma clara visão dogmática e real incapacidade de construir uma educação pujante, o governo, à época, alegava que o PECIM seria a solução para o enfrentamento das supostas questões advindas da vulnerabilidade social em que as escolas estão inseridas. Contudo, o programa, marcado por muitas denúncias e pouco êxodo, foi extinto no governo atual. No entanto, alguns Estados, indo na contramão da proposta de educação estabelecida pelo MEC, se dispõe em continuar com esse pernicioso modelo ensino.

Sem nenhum dado sério sobre o desempenho pedagógico de alunos(as) inseridos(as) nesse sistema de escola militarizada, após quatro anos de implementação desse modelo de ensino, o que temos são muitas contrariedades e uma pedagogia regressista praticada por tal modalidade educacional. Especialistas e entidades educacionais criticam a modalidade e apostam na desaceleração ou no fim do programa. Os índices que permitem avaliar o desempenho dos(as) alunos(as) não são congruentes, além de haver um aumento nas ocorrências registradas no ambiente escolar das instituições cívico-militares. Isso diverge bastante da então justificativa utilizada para implementar desse descabido plano educacional. 

Na prática, essas escolas, oferecem um ensino com baixo incentivo ao exercício da reflexão, arraigado a uma atividade pedagógica retrógrada que mais revela desconforto do que algo salutar, quando há muito que ensinar aos estudantes, desde bons conteúdos curriculares à valorização dos aspectos culturais dos diferentes grupos sociais que congregam a população brasileira. Na configuração desse ensino, o que se ver são repetidas orientações que transitam pela linha do dogma, que leva as crianças e os jovens — por imposição ou submissão — a acreditar em algo descontextualizado da realidade sócio-política em que vivem.

Aqui reafirmo que essa ideia de ensino cívico-militar, é o oposto do arcabouço de uma efetiva educação, a qual se comporta como um fenômeno humano capaz de garantir uma educação voltada para o respeito à diversidade, e que defenda a inclusão de saberes e que rompa com os elos instituídos, quebrando paradigmas sem causas e efeitos. A inclusão, portanto, não significa tornar todos iguais, mas respeitar as diferenças de raça, religião, nacionalidade, classe social, econômica, cultural ou capacidade física e intelectual, desenvolvendo no ambiente escolar uma mutualidade e o aproveitamento dessas diferenças para melhorar as relações na escola e na sociedade.

Quanto à questão da violência, este sistema já demonstrou a sua ineficiência em diminuir os índices de casos. Segundo levantamento realizado pela Promotoria de Justiça de Defesa da Educação (PROEDUC) na capital federal, a média de atos infracionais dentro das escolas cívico-militares dobrou entre 2019, quando começou o programa, e 2022, explica a professora Márcia Gilda, diretora do Sindicato dos Professores do DF (SINPRO-DF).

Essa escalada de violência, contrasta com o falso argumento defendido pelos idealizadores do programa, que era a disciplina e a segurança nas escolas. No caso da segurança, do ponto de vista da educação, considero que quando a polícia precisa ir para dentro da escola para ela ser segura, significa dizer que as forças de segurança pública falharam em suas funções sociais. Pois não existe escola violenta em sociedade segura. Sobre a disciplina nas escolas militarizadas, entendo também que se há obediência, certamente não foi estimulada pela educação, e sim pelo medo. Medo de ser punido, medo de ser constrangido e humilhado diante dos colegas de aula.

A disciplina nas escolas, de forma compulsória, faz com que as instituições de ensino sejam transformadas em um ambiente de medo e intimidação. Educadores evidenciam que, em nome da falsa disciplina, crianças e adolescentes têm sua autonomia e seu desenvolvimento saudável comprometidos pela repressão do pensamento crítico. Paulo Freire, fugindo desse papel, diz que “a transformação salutar no indivíduo está ligada a sua interação com a história da qual ele faz parte. Por isso a mudança envolve a interação com outros indivíduos e a interferência direta ou indireta deles, exigências recíprocas, cuja responsabilidade não podemos nos eximir.” Nesta linha, é fenomenológico dizer que não existe educação sem a liberdade de pensar e de agir salutarmente, algo que permite uma compreensão crítica da prática sociocultural na qual os(as) alunos(as) estão inseridos(as).

Em face do que considero que seja uma educação de qualidade, atribuo que a militarização das escolas muda completamente a dinâmica do espaço escolar, que é de movimento, debates e construção do protagonismo juvenil, de desenvolvimento do pertencimento racial e de gênero, trazendo uma série de normas advindas de quartéis, onde a palavra de ordem é obedecer; tratando os alunos e alunas de forma padronizados(as), ignorando a individualidade de cada estudante, além de reprimir sua construção enquanto pessoa.

Logo, militarizar a escola faz com que ela funcione a partir de uma lógica de uniformização dos sujeitos e dos comportamentos humanos. Tudo isso passa a ser padronizado, levando a um processo de negar os sujeitos, porque os sujeitos são, em si, diversos. Por isso julgo que militarizar a escola é negar direito à educação. A qual tem a ver com o desenvolvimento pleno dos sujeitos, de suas especificidades, de formar uma pessoa para a vida em sociedade. Ao proibir a demonstração de atividades, regular ou reprimir a liberdade saudável, obrigar a bater continência, está se formando um sujeito que entende que a única certeza da vida é obedecer aquela lógica. E obedecendo essa lógica, faz com que o sujeito não esteja preparado para viver em uma sociedade diversas.

Portanto, a transformação humana através da educação, exige a utilização de diferentes estratégias para responder às diferentes necessidades, capacidades e níveis de desenvolvimento individuais. Isto exige intervenções necessárias e modificadoras capazes de nortear as transformações dos(as) alunos(as) a partir daquilo que consideramos uma educação efetiva. Ao contrário do que mostra ser a escola militarizada que, através da repreensão, tira do educando a possibilidade de vislumbrar — à sua maneira — as coisas que acontecem na vida da escola, da comunidade e do país.

Assim, reputo que esse modelo de ensino militarizado, contraproducente, que tanto prejuízo trouxe para a educação brasileira, não está consoante a escola pública que o Brasil precisa, pois não gerar resultados educacionais de qualidade, não se viabiliza economicamente, além de ser influenciado por desmandos políticos, onde também sofre com a desconstrução da educação advinda do berço familiar. Portanto, esse modelo de escola deve ser sumariamente abolido do Brasil.

*Filósofo, professor e escritor.

** Os textos publicados nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião da FolhaBV