Sebastião Pereira do Nascimento*
Antes de aprofundarmos no assunto, é necessário entendermos como os termos “esquerda” e “direita” entraram no repertório político mundial, hoje tão disseminado diante da incompreensão dos próprios termos. Em linhas gerais, a ideia de designar esses segmentos ideológicos (esquerda e direita), remonta o tempo após a revolução francesa, quando os parlamentos formados por toda a França no final do século XVIII eram organizados de forma que os representantes da aristocracia se sentavam à direita e os representantes da burguesia sentavam à esquerda dos grandes.
Os aristocratas defendiam, além de seus privilégios, da igreja e da sociedade de classes que existia no antigo regime, ou seja, eram conservadores no sentido de manter as estruturas sociais vigentes. Já os que se sentavam à esquerda representavam os interesses da burguesia, a classe que estava pagando a conta da aristocracia e da igreja, mas que até aquele momento não tinha poder político. Naquele contexto, trabalhadores, camponeses e pobres em geral não eram representados nessas assembleias e a ideia de democracia ainda era bastante restrita.
Dado à limitação deste espaço, a intenção aqui não é aprofundar numa linha divisória entre a esquerda e a direita, mas de todo caso, é possível fazer uma breve correlação entre essas duas correntes políticas, atribuindo rótulos muito simples de aplicar a ambos os lados. Por exemplos, considerando que ser de esquerda é estar mais preocupado com a coletividade e a comunidade em geral e não com a individualidade. Onde as principais causas que exigem lutas são causas sociais, de grupos, tribos, minorias, etc.
No tocante a direita, é pensar num sistema onde podem surgir monopólios econômicos que dominam a vida das pessoas ou que impeçam outras de terem oportunidades de crescimento, podendo ser a população mais pobre relegada sempre a uma condição pior, por não ter forças suficientes para sair da inópia promovida pelo poder do capital. De mais a mais, as empresas são livres para decidir sobre os rumos de seus negócios, sem algum controle estatal, podendo acarretar crises econômicas, elevadas desigualdades sociais, além de conflitos nas relações entre empregados e patrões, sempre com opressão e exploração da parte mais fraca.
Não obstante, não é nada de mais dizer que a esquerda também pensa em capital. Entretanto, quando se pensa na definição de capital afiançado pela esquerda, principalmente em países em desenvolvimento, é preciso incluir a ideia de desenvolvimento como objetivo básico e a ideia de nação como objetivo para o desenvolvimento. Por outro lado, o interesse e a capacidade de promover o desenvolvimento econômico, assim como a liberdade, não distinguem a esquerda da direita. É natural que cada um dos agrupamentos políticos afirme ser mais capaz de uma coisa ou de outra. Via de regra, vimos historicamente governos de direita e de esquerda sendo bem-sucedidos e outros desastrosos em relação a esses dois objetivos políticos.
Em outros pontos, na América Latina é sempre possível dissociar a esquerda da direita em países capitalistas e democráticos da região. Isso porque a esquerda é uma realidade tão viva e renitente que pressupõe um conceito amplo de esquerda e dos problemas relacionados, onde ela se distingue ou deve se distinguir da esquerda na Europa, que sempre lhe serviu de parâmetro para poder ser autêntica e ter condições de governar.
Outro fato a ser considerado na América Latina é a existência de uma política rotativa capaz de mudar governos de diferentes doutrinas ideológicas — ora de esquerda, ora de direita ou de extrema-direita —, muitas vezes de ciclos curtos, quando as mudanças são necessárias, sobretudo em função das políticas desastrosas causadas por esses governos, sendo a maioria de direita ou de extrema-direita, ainda que tenha alguns exemplos nocivos praticados pela “esquerda”, por exemplo, na Venezuela, quando Hugo Chaves (um militar verdugo disfarçado de progressista) ganha as eleições, e anos depois é sucedido por Nicolás Maduro (da mesma ordem política), um governo ditador com forte apelo à extrema-direita. Isso sugere que um regime ditatorial, não necessariamente pode partir apenas de legendas de esquerda, mas também de outras correntes ideológicas da direita partidária do conservadorismo, fascismo, etc., onde muitas vezes se aproveitam das benesses democráticas, abraçando agendas inexoráveis como, por exemplo, o golpe militar de 1964 no Brasil, o qual subverteu a ordem existente no país, dando início ao regime ditatorial que se estendeu de 1964 até 1985. Mas recentemente, Jair Bolsonaro, outro verdugo de extrema-direita e defensor do autoritarismo, disseminando mentiras e distorcendo fatos, tentou de tudo para recompor a ditadura militar no país; foi felizmente banido pela maioria da população brasileira.
Contudo, o que fica claro diante de tudo isso, é que essas alternâncias de poderes firma a ideia de que a esquerda está sempre agindo, quando chamada pela população, para remontar o país após infaustos acontecimentos causados por governos de direita ou de extrema-direita. No Brasil, isso é patente durante o processo de redemocratização do país (nas mãos de governos conservadores), quando a população chama a esquerda através da eleição de Luís Inácio Lula da Silva, em 2002, para tirar o país do marasmo político que se fazia presente. A esquerda chegou abrindo espaço para diversas reformas sociais e econômica, com um forte programa de combate à fome e à miséria, além de promover importantes agendas na educação, meio ambiente, ciência e tecnologia, etc., levando o país à modernização, ao crescimento e ao cenário político internacional.
Mais tarde, pouco mais de uma década depois, a partir de um plano sódico dos setores da aristocracia, o país volta às mãos de um governo de extrema-direita, que em quatro anos de ocupação leva o país à completa ruína. E mais uma vez a população decide chamar a esquerda, a frente dela, novamente Luís Inácio Lula da Silva, que vem para juntar os cacos e reconstruir o Brasil — com o compromisso de reconstruir do país, Lula não apenas derrotou Bolsonaro, mas também reassumiu o comando de uma aliança promissora para a América Latina, trazendo um grande equilíbrio geopolítico para a região, além de um importante significado contra o avanço global da extrema-direita.
No entanto, a frente dessa liderança política, o presidente Lula deve se convencer de que a situação na Venezuela não só incomoda a nociva bolha de extrema-direita (que age com os mesmos propósitos do governo venezuelano), mas também boa parte de seus apoiadores que prezam, por dever, a democracia. Assim, Lula tem que entender que a América Latina só pode prosperar e prolongar a hegemonia da esquerda latino-americana, caso haja governos de ideias progressistas capazes de, além de derrubar governos ditadores, inspirar a liberdade, a justiça e as igualdades sociais. Coisas que respondem o porquê da esquerda voltar sempre para seus berços políticos, como vem acontecendo neste começo da terceira década do século XXI, quando a esquerda está sendo chamada de volta ao governo de vários países importantes da América Latina, como nos casos mais recentes do Chile, da Colômbia e agora do Brasil. Um pouco antes, as forças progressistas latino-americanas já haviam vencido as eleições e assumido o governo em alguns países como México, Argentina, Bolívia, Peru, Honduras, entre outros.
Contudo, a presença da esquerda neste bloco continental, ainda que tenha respostas unívocas a algumas questões, é algo emblemático, especialmente por estarmos no campo minado das ideologias, como diz o professor Luiz Carlos Bresser-Pereira (FGV). Portanto, é preciso combinar o método histórico-dedutivo da boa ciência social com o método normativo da teoria política para compreendermos claramente essa relação de “amor” e “ódio” com a esquerda. Pois numa primeira impressão o que fica são apenas as razões pragmáticas que obrigam chamar a esquerda de volta, isto é, quando a coisa estar caótica chama a esquerda, melhorou a situação, chama aqueles que destroem tudo. E diante dessa perspectiva, é preciso buscar respostas que sejam abertas o suficiente para compreendermos essa realidade tão complexa e, ao mesmo tempo, tão necessária a ponto da esquerda não se constituir em mera pauta de lugares-comuns.
*Filósofo e escritor.