OPINIÃO

A face feminina da migração venezuelana

                                                                                                                            Andréa Freire

Conhecido por sua política migratória inclusiva e organizada, a partir de 2017 o Brasil abriu as portas para mais de 903.279 mil migrantes venezuelanos, tendo concedido o status de refugiado para 82 mil deles, segundo dados do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE). Ainda assim, a situação apresenta inúmeros desafios que precisam ser enfrentados para que seja garantida, a essa população que chega ao país, uma integração efetiva com direitos plenamente assegurados.

Nos últimos meses, temos observado uma intensificação do fluxo migratório na fronteira entre o Brasil e a Venezuela – atualmente 800 a mil pessoas, em média, chegam a Pacaraima diariamente – bem como uma elevação do perfil de vulnerabilidade daqueles que escolhem o país como destino. Segundo a Plataforma R4V (Response for Venezuelans) da ONU, a fome é o principal motivo para migrar, seguido por questões de saúde e violência.

O alto volume de migrantes em uma cidade fronteiriça, sem estrutura até mesmo para atender aos próprios moradores, pressiona a estrutura de serviços, abrindo espaço para a xenofobia e a discriminação. Além de esclarecer e sensibilizar a comunidade sobre o processo de acolhida mostrando que a imigração pode, sim, contribuir para a economia do país, nosso trabalho é integrar e internalizar aqueles que querem construir uma vida aqui, uma etapa que, infelizmente, as políticas públicas brasileiras ainda não contemplam. Sobre isso, um dado alarmante é que, entre 2021 e 2022, o número de trabalhadores migrantes resgatados do trabalho escravo dobrou no Brasil.

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No fluxo venezuelano, mulheres e crianças são os perfis mais vulneráveis e praticamente metade (48%) dos migrantes são mulheres, dessas, cerca de 10% já chegam grávidas, 19% são chefes de família monoparental, grávidas e com muitos filhos (40% das mulheres têm entre dois ou três filhos). As gestantes vêm sem nenhum tipo de acompanhamento pré-natal e, como as crianças, em quadro grave de desnutrição e insegurança alimentar, aumentando o número de bebês natimortos e abortos. A migração clássica sempre foi pensada para atender a homens solteiros e essa mudança exigiu que as organizações da sociedade civil e o próprio estado brasileiro repensassem sua prática.  Outro aspecto que chama atenção é o crescente número de crianças e adolescentes desacompanhados cruzando a fronteira. Houve um aumento de 191% nos atendimentos a este público, sendo que as meninas representam 51%.  

É nesse contexto desafiador que, desde 2019, a Visão Mundial tem atuado diretamente na resposta à situação migratória venezuelana no Brasil junto à Operação Acolhida, Organizações Internacionais e organizações da sociedade civil prestando atendimento a mais de 150 mil migrantes e refugiados que estão vivendo no Brasil. Por meio de ações voltadas à proteção, WASH (sigla em inglês para higiene, saneamento e água), segurança alimentar e geração de meios de subsistência, a organização está comprometida em garantir o bem-estar e os direitos de crianças e adolescentes migrantes e refugiados, bem como suas famílias, em seu novo lar. É importante destacar que 29% dos migrantes e refugiados venezuelanos no Brasil são crianças e adolescentes, que necessitam de ações específicas para assegurar sua integração, desenvolvimento e proteção. Em contrapartida, somente 6% dos fundos previstos para a resposta em 2023 compreendem ações direcionadas a proteção de crianças.

Segundo a Acnur – agência da ONU para refugiados – um dos principais requisitos para a integração é aprender a língua nativa do país. Em 2019, iniciamos o projeto Ven, Tu Puedes! para capacitar migrantes e refugiados venezuelanos para o mercado de trabalho brasileiro com cursos de português, profissionalizantes, emissão da carteira de trabalho digital e orientação sobre direitos trabalhistas. Para o empregador, criamos o Selo Empresa Amiga do Migrante, que ajuda a desmistificar conceitos equivocados de que contratar migrante é um processo difícil e burocrático e faz parte da estratégia de interiorização que encaminha pessoas para cidades com mais estrutura e oportunidades, principalmente no sul e sudeste do país.

São prementes as necessidades na rede de assistência a crianças e adolescentes, tornando urgente uma ação integrada junto ao poder público e organizações civis. Mulheres e crianças estão em maior risco, elas assumem a responsabilidade pelos cuidados e enfrentam maiores vulnerabilidades, tem menor empregabilidade porque necessitam de escolas e creches para as crianças e estão mais suscetíveis a diversas violências. Depois de mais de cinco anos de intenso trabalho em resposta à crise migratória venezuelana, seguimos empenhados em mobilizar a sociedade para que se engaje nessa tarefa solidária e que, infelizmente, ainda está longe de terminar.

*Andréa Freire é Gerente Sênior da Visão Mundial Brasil. A World Vision, conhecida no Brasil como Visão Mundial, é uma organização humanitária cristã dedicada a trabalhar com crianças, famílias e suas comunidades para atingir todo o seu potencial, combatendo as causas da pobreza e da injustiça.