João Paulo M. Araujo
Um dos traços marcantes no desenvolvimento da filosofia analítica ao longo do séc. XX é a sua crítica à metafísica. Desde a insurgência de Russell e Moore contra o idealismo de base hegeliana na Inglaterra, passando pelo Tractatus de Wittgenstein, pelo círculo de Viena e culminando nos famosos artigos de W. Quine “Dois Dogmas do Empirismo” e “Epistemologia Naturalizada” a filosofia esteve sempre compromissada em erradicar os fantasmas da metafísica. O problema é que a fantasmagoria metafísica não é algo tão simples de ser erradicada. Fantasmas não ocupam espaço e tampouco são entidades que podem ser observadas com os mesmos critérios dos objetos do nosso mundo natural. Em nossos dias atuais, a imagem de um fantasma é um artigo de fé ou uma peça sofisticada de nossa imaginação. Quando olhamos para o desenvolvimento da metafísica na tradição filosófica, podemos enxergar a forte atividade da imaginação nos mais diversos constructos teóricos do saber humano. Mas a imaginação filosófica não é qualquer tipo de imaginação, trata-se, antes de tudo, de um tipo especial de especulação, de um rigoroso exercício do pensar.
Onde pretendo chegar com isso? As questões filosóficas podem ser compreendidas como questões metafísicas e questões metafísicas não são tão fáceis de serem resolvidas. Por mais anti-metafísico que possa parecer uma postura filosófica, é sempre possível identificar nela pressupostos metafísicos. Do atomismo lógico de Russell ao isomorfismo linguístico de Wittgenstein; do Aufbau de Carnap aos inputs e outputs de Quine é possível detectar de maneira explícita ou implícita a poeira metafísica que circunda seus modelos explicativos. Por mais naturalista que possa aparentar uma filosofia, a metafísica sempre estará presente; em suas moradas, ela é a poeira embaixo do tapete.
A partir da segunda metade do séc. XX muitos filósofos já começaram a perceber isso, de modo que a visão preconceituosa de um ideal de filosofia que não tivesse comprometimentos metafísicos, cada vez mais deixava de figurar entre os principais objetivos dos filósofos. Aceitar que a metafísica nos é inescapável, parece ter um efeito apaziguador como uma espécie de fármaco estoico. Saul Kripke ao desenvolver uma nova lógica dos mundos possíveis, conseguiu propor algo novo na filosofia analítica aceitando a dimensão metafísica sem nenhum drama. Era possível falar de essências de maneira naturalizada. O naturalismo aqui, significa uma dada postura filosófica está em consonância com as descrições oferecidas pelas ciências naturais. É nesse sentido que podemos falar de uma metafísica a posteriori.
Ora, toda metafísica parece ser de base apriorística, logo, como é possível falar de uma metafísica a posteriori? Entre os continentais isso já era lugar comum; quando olhamos para as filosofias da existência, percebemos que não é mais a essência que precede a existência, mas sim o seu contrário. A ideia de uma metafísica a posteriori ou de um essencialismo naturalizado, tem como pressuposto fundamental a ideia de que podemos transferir o poder das asserções que pretendem dizer quais os aspectos essenciais da realidade, para as ciências naturais. Quando observamos os exemplos dados por Saul Kripke em Naming and Necessity (1980) isso fica mais claro.
Na supracitada obra, Kripke inverte completamente as noções clássicas kantianas de contingente/necessário e a priori/a posteriori. Classicamente, tudo que é contingente é de ordem daquilo que poderia ou não ser o caso, isto é, a ordem da possibilidade. Em contrapartida, tudo que é necessário é de ordem daquilo que não poderia ser diferente. A necessidade aqui é uma necessidade lógica. Quando falamos em necessidade lógica parece que sempre apelamos para princípios e causas primeiras que pressupõem uma relação a priori com aquilo que conhecemos, em outras palavras, não precisamos recorrer a experiência para determinar seu valor de verdade. Por outro lado, quando falamos em possibilidade lógica ou em contingência, o caráter a posteriori do nosso conhecimento toma seus contornos, ou seja, parece que necessitamos da experiência para determinar seu valor de verdade. Portanto, classicamente, falar em juízos necessários é falar em juízos a priori, enquanto que falar em juízos contingentes, é falar em juízos a posteriori.
Vamos então aos contraexemplos de Kripke no qual é possível falar de contingente a priori e necessário a posteriori. Em Naming and Necessity, dois exemplos são notórios: (1) a medida do metro padrão e (2) espécies naturais (natural kinds). Como exemplo para um tipo de juízo que seria da classe contingente a priori, temos a medida do metro padrão. Sabemos que um metro possui 100cm, possuir 100cm é meramente arbitrário segundo a unidade de medida que utilizamos. Sabemos que medir coisas em metros e centímetros não é a única unidade de medida existente, os norte-americanos, por exemplo, usam outra unidade de medida. Isso por sua vez revela o caráter contingente do metro padrão possuir 100cm. Apesar disso, uma vez que determinamos que o metro padrão possui 100cm, essa unidade de medida que sabemos ser meramente contingente, passará a ser utilizada de maneira a priori. Dito de outra forma, não precisamos mais ficar medindo coisas para saber que um metro possui 100cm, a partir de então passamos a utilizar essa unidade de medita de maneira a priori em nosso conhecimento.
Para os exemplos de juízos do tipo necessário a posteriori, Kripke apela diretamente para as ciências naturais. As espécies naturais (natural kinds) podem ser entendidas como elementos químicos e seus números atômicos, DNA, partículas subatômicas da matéria etc. Por exemplo, sabemos que o número atômico do ouro é 79; em qualquer lugar do universo se houver ouro ele terá o número 79 e a massa 197. É necessário que parar ser um elemento descrito como ouro ele possua essas especificações que lhe conferem uma identidade que o distingue dos outros elementos. Todavia, essa necessidade não é de natureza a priori, mas sim a posteriori. Nem sempre tivemos uma compreensão do ouro nesses termos. A química, em específico, a tabela periódica, é um constructo da segunda metade do séc. XIX. Portanto, saber que o número atômico do ouro é 79 é algo que precisou da experiência para determinar seu valor de verdade, a necessidade que passou a imperar daí, que determina o caráter essencial do ouro em qualquer lugar do universo, é uma necessidade a posteriori. Isso é o que na prática podemos chamar de uma naturalização de essências, mas essa naturalização não ocorre apelando para princípios e causas primeiras, mas sim, para a observação empírica daquilo que comumente chamamos realidade.
De início essa inversão ou aplicabilidade proposta por Kripke, causa uma certa confusão conceitual quando pensamos essas relações entre a necessidade e a contingência em relação com o a priori e o a posteriori. Mas se analisarmos bem, faz sentido o modo como é exemplificado essas relações. Claro, em termos filosóficos, tudo é passível de questionamento, e a visão de Kripke não ficou incólume desde a publicação de Naming and Necessity. Mas o que é importante ressaltar em meio a tudo isso, é que a metafísica continua presente em muitas formas de especulação filosófica, sobretudo, em nossa atualidade. Costumo sempre pensar que nós, seres humanos, somos seres metafísicos, desde a forma como nos definimos em termos de nossa identidade pessoal, ao modo como nos relacionamos com os diversos objetos do nosso conhecimento. A metafísica nos é inescapável.
João Paulo M. Araujo é professor do curso de filosofia da UERR