OPINIÃO

A ontologia da realidade social

João Paulo M. Araujo
Professor de filosofia no IFRR
Membro da Escola Amazônica de Filosofia

Uma das questões mais proeminentes da história da filosofia é: por que existe o ser ao invés de não existir nada? A tamanha abrangência desta pergunta nos permite pensar em qualquer coisa do universo, pois, parafraseando Parmênides, pensar e ser é o mesmo. Entretanto, aqui pretendo me voltar para um tipo de discussão especial sobre existência, a saber: a existência da realidade social. A realidade social constitui uma parte daquilo que podemos chamar de metafísica de nossa vida cotidiana. Mas o que seria isso exatamente? Tomo como base do atual texto a obra de Searle intitulada The Construction of Social Reality (1995).

De acordo com Searle, há partes do mundo real que ganham o status de fato devido aos acordos humanos. Dito de outra forma, essas partes do mundo real existem apenas porque acreditamos que elas existem. Tomemos como exemplo o dinheiro, um pedaço de papel que representa uma nota de cem reais ou o valor numérico que aparece como resultado de uma transferência via pix. Mas o que é que faz com que essas coisas possuam o valor que possuem a ponto de considerarmos sua existência? O que eu poderia fazer com uma nota de cem reais no brasil colônia? Ou melhor, o que eu poderia comprar em 2024 com uma moeda de mil réis do ano de 1889? Além do exemplo do dinheiro, podemos citar muitos outros exemplos, como o casamento, o governo e a propriedade.

Para se referir a esses tipos de fatos que dependem do acordo humano, Searle cunhou o termo “fatos institucionais”. Esses fatos requerem instituições humanas para existir como no exemplo do dinheiro, o que sustenta sua existência é meramente uma instituição humana que determina sua operacionalidade. Por outro lado, os fatos institucionais contrastam diretamente com aquilo que ele chamou de “fatos brutos” que, por sua vez, não requerem nenhum tipo de instituição humana para existir. O Monte Roraima ou o Rio Branco são exemplos de fatos brutos. Embora usemos a instituição da linguagem para se referir a estes fatos, Searle pontua que devemos distinguir o fato em si da linguagem usada para declará-lo.

Uma pergunta elementar que podemos formular aqui é: como os fatos institucionais são possíveis? Para Searle, responder essa questão implica em se comprometer com a tese de que há uma realidade que existe independente de nós; assim, os fatos institucionais precisam, em alguma medida, depender de tal realidade. Esse realismo de Searle tem por objetivo se esquivar de comprometimentos idealistas segundo o qual, tudo o que existe, ou que chamamos de realidade, depende de nossas mentes para existir enquanto tal. De acordo com Searle, a complexa estrutura da realidade social é leve e invisível. Somos desde cedo educados a partir da ótica de uma cultura que faz com que tomemos a realidade social como algo garantido. Aprendemos diversos usos perceptuais e linguísticos para uma série de objetos de nosso cotidiano como casas, escolas, hospitais etc., sem refletirmos muito sobre o tipo de ontologia que essas coisas carregam. Naturalizamos essas coisas da mesma forma que tomamos como natural rios, árvores e outras coisas cuja a existência não depende de nossa ação coletiva.

Tal naturalização faz parte do processo, justamente porque muitas delas repousam em uma ontologia mais fundamental. Para Searle, a realidade social faz parte de uma ontologia maior. Grosso modo, essas ontologias mais fundamentais (o que também não implica em reducionismo), seriam a teoria atômica da matéria e a biologia evolutiva. Da mesma forma que o exemplo da linguagem enquanto instituição, Searle não se refere à física e a biologia enquanto constructos teóricos, mas sim aos objetos mais elementares observados por essas disciplinas, a coisa (de re) e não o que se diz dela (de dicto). Para ilustrar esse ponto, podemos pensar no aparecimento do sistema nervoso que, por seu turno, possibilitou o surgimento da vida consciente e consequentemente, da intencionalidade. A própria noção de intencionalidade como a capacidade da mente de representar objetos e estados de coisas no mundo, também ganhou matizes na ontologia social de Searle uma vez que ele chega a falar de intencionalidade coletiva.

Na tentativa de esclarecer a dimensão ontológica da realidade social, Searle faz uso de uma distinção de ele chamou de características intrínsecas e características relativas ao observador. Essa distinção nos ajuda a entender aquilo que é inerente de uma ontologia social e aquilo que independe enquanto objeto ou fato bruto. Para darmos um exemplo, vejamos as seguintes proposições “a lua causa as marés” e “a lua é linda à noite”. A primeira delas é uma característica intrínseca uma vez que o seu comportamento causal independe do que acredito ou deixo de acreditar. A segunda depende do observador, pois, não podemos afirmar que a beleza é uma propriedade intrínseca do objeto (a lua) de nossa percepção.

Para Searle amarrar sua discussão da realidade social dentro de uma ontologia científica geral ele precisa de três conceitos chaves em sua explicação a saber: 1. Atribuição de função, 2. Intencionalidade coletiva e 3. Regras constitutivas.

De acordo com Searle, a atribuição de função surge a partir da observação da capacidade que os humanos e outros animais têm de impor funções aos objetos, tanto naturais quanto aqueles criados com a finalidade executar as funções atribuídas. Essa é uma característica de nossa intencionalidade, construímos artefatos para servir uma finalidade ou atribuímos funções a coisas já existentes como árvores, rios etc. Searle chama atenção para o fato de que as funções atribuídas não são intrínsecas aos objetos. Elas são atribuídas por sujeitos conscientes, portanto, relativas ao observador.

No que concerne à intencionalidade coletiva, ela está relacionada ao comportamento cooperativo no qual são compartilhadas crenças, desejos e intenções. Isso não é uma característica apenas de nossa espécie. Mas em nosso caso enquanto espécie, um exemplo seria os jogos coletivos como futebol, vôlei, basquete etc. Por mais que nossas funções possam ser diferentes num determinado esporte, para desempenhar nossos papeis precisamos compartilhar de uma intencionalidade coletiva, no caso do jogo, poderíamos afirmar que um dos objetivos é ganhar a partida. Outro exemplo é o da orquestra sinfônica. Na orquestra, apesar dos diferentes instrumentos, há uma intencionalidade coletiva em executar uma brilhante performance.  

Com relação às regras constitutivas, elas representam o modo de ser de certas atividades. Para entendermos as regras constitutivas primeiro é preciso entender o que são regras reguladoras. Segundo Searle, algumas regras regulam atividades previamente existentes como no exemplo “dirigir do lado direito da pista”. Ora, não parece haver dificuldade em imaginar que o ato de dirigir já existia antes das regras que regulariam o tráfego. Por outro lado, de acordo com Searle, algumas regras não apenas regulam, mas também criam a própria atividade em questão, por isso a noção de constituição. Searle usa o exemplo do xadrez, não é o caso que antes da constituição do jogo em si haviam peças (peões, torres, cavalos, etc.) perambulando por aí de maneira aleatória. Logo, as regras do xadrez não regulam uma atividade já existente, elas fundam a própria atividade.

Assim como a atribuição de função e a intencionalidade coletiva, as regras constitutivas são uma noção importante para a discussão sobre o fundamento da ontologia da realidade social. Segundo Searle, as regras vêm em sistemas que possui a forma “X conta como um Y no contexto C”. Aplicando isso em alguns fatos institucionais, vamos novamente tomar o exemplo do dinheiro. A forma “X conta como um Y no contexto C” se traduziria na seguinte expressão “As cédulas legalmente emitidas pela casa da moeda (X) conta como dinheiro (Y) no Brasil (C)”.

O debate mais amplo sobre a construção da realidade social em Searle envolve um aprofundamento maior desses e outros elementos. Na continuidade que segue os escritos de Searle é possível ver outras questões, como por exemplo, a noção de racionalidade e ação (2001). A discussão sobre a ontologia da realidade social também se conecta com outras discussões anteriores como a teoria dos atos de fala (1979), da intencionalidade (1983) e do naturalismo biológico (1992). Isso nos habilita a dizer que é possível deduzir a partir dos escritos de Searle, um sistema filosófico, onde os temas citados acima e muitos outros estariam em íntima conexão. Portanto, entendendo por essa perspectiva, a discussão de Searle sobre ontologia social seria uma extensão que só foi possível devido aos escritos anteriores, mas que também ganha um complemento nos escritos posteriores.