OPINIÃO

Afinal de contas, o que é o amor?

Lidiane Gomes Pereira

Graduada em filosofia pela UFPE

Um dos maiores poetas brasileiros Carlos Drumond de Andrade, em seu poema “As sem-razões do amor” irá nos dizer exatamente o que o título sugere, que o amor foge a explicações e justificações racionais: “Eu te amo porque te amo. Não precisas ser amante, e nem sempre sabes sê-lo. Eu te amo porque te amo. Amor é estado de graça e com amor não se paga. Amor é dado de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no eclipse. Amor foge a dicionários e a regulamentos vários…” Através da análise deste poema, o amor seria uma espécie de encantamento mágico, que não sabemos como surge, não conseguimos mapeá-lo, ocorrendo de forma inexplicável. Assim o sendo, o amor estaria envolto a uma malha de mistério e com uma “lógica” muito peculiar, própria para quem o sente.  Estaria o amor recluso a uma bolha individual, justificando assim o fracasso do amor em nossa sociedade?

No livro XI das Confissões, Santo Agostinho ao se deparar com a questão “que é, pois, o tempo?” responde, “se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.” (AGOSTINHO, 1980). Aconteceria o mesmo com o amor? Se ninguém nos pergunta, sabemos, afinal de contas alguém poderia dizer “amo minha mãe, meu pai, meu filho(a), etc.” Entretanto, ao tentar explicar a um interlocutor, já não saberia como. Poderíamos dizer que conhecemos o amor mesmo que não consigamos explicá-lo? Precisamos definir o amor para conhecê-lo?

Para bell hooks (assim mesmo com letra minúscula), intelectual e ativista contemporânea norte americana que escreveu uma trilogia sobre o assunto, sim. Para ela, a nossa confusão a respeito do amor é a origem da nossa dificuldade em amar. Em Tudo sobre o amor: novas perspectivas, bell hooks deixa claro a importância de pôr o amor em palavras, ter uma definição clara e precisa do que é o amor. Pois é através dessa definição que nossas ações serão orientadas. “Em todos os lugares aprendemos que o amor é importante, mas somos bombardeados pelo seu fracasso” (HOOKS, 2021). Não seria mais fácil aprender como amar se começássemos com uma definição clara e partilhada do assunto? Basicamente, o esforço de bell hooks será tirar o amor do lugar do intangível, desnudá-lo da capa dos mistérios, trazendo-o para o campo da ação.

Hooks passará anos nessa empreitada investigativa nos contando de forma íntima, ensaísta, sua análise que perpassa desde a indústria cultural, às suas vivencias pessoais (relacionamentos afetivos, familiares, amizades etc.), a investigação acadêmica. Durante seu processo investigativo evidenciou a falta de espaços e debates públicos sobre essa temática. Percebeu que o lugar de expressão de nosso desejo sobre o amor estaria no domínio da cultura popular, isto é, através de filmes, músicas e peças teatrais. Nos dias atuais, acrescentaria também as igrejas, que crescem cada vez mais no nosso país e são espaços onde as narrativas sobre o amor são bastante exploradas.

Outro ponto que merece destaque no processo de pesquisa da autora, seria a falta de narrativas femininas sobre o amor, da grande maioria dos livros “reverenciados”, os que são usados nas referências, e mesmo os mais populares de autoajuda, foram escritos por homens. “Quando eu era mais nova, lia sobre o amor e nunca pensava a respeito do gênero do autor. Ansiosa para compreender o que queremos dizer quando falamos de amor, não considerava de fato o quanto o gênero molda a perspectiva do escritor.” (HOOKS, 2021). Somente quando começou a pensar mais seriamente sobre o tema e a escrever sobre isso, passou a analisar também se mulheres o faziam de forma diferente dos homens. E a resposta é obviamente positiva. Em sua análise, percebeu que a maioria dos homens sentem que recebem amor, sabem o que é ser amado, isso garante-lhes a figura de autoridade no assunto; já as mulheres, geralmente se sentem num estado constante de anseio, desejando o amor, mas sem recebê-lo. “Homens geralmente escrevem a respeito do amor recorrendo à fantasia, ao que eles imaginam ser possível, e não ao que sabem concretamente.” (HOOKS, 2021).  Num outro momento, afirma que “A fantasia masculina é vista como algo capaz de criar a realidade, enquanto a feminina é tratada como puro escapismo.” (HOOKS, 2021). O gênero literário que as mulheres falam de amor com algum grau de autoridade seria o romance. Bell hooks destaca que as elaborações visionárias das mulheres sobre o assunto ainda precisam ser levadas a sério tanto quanto os pensamentos e escritos masculinos. Sem falar que dentro da lógica patriarcal, uma mulher ao falar de amor é no mínimo suspeita, porque muito provavelmente o que uma mulher esclarecida teria a dizer sobre o amor representaria uma ameaça direta que desafiaria às visões que nos foram oferecidas pelos homens.

Mas afinal de contas, o que é o amor? Que resposta bell hooks nos dará?

A autora irá encontrar o seu caminho conceitual para definir o amor na obra de um psiquiatra que reverbera o trabalho de Erich Fromm. O amor será definido como “a vontade de se empenhar ao máximo para promover o próprio crescimento espiritual ou o de outra pessoa.” (HOOKS, 2021). E continua, “O amor é o que o amor faz, amar é um ato da vontade – isto é, tanto uma intenção quanto uma ação. A vontade também implica escolha. Nós não temos que amar. Escolhemos amar.” (HOOKS, 2021). Amar é uma escolha. E deve ser feita para alimentar o crescimento pessoal próprio ou de outrem. Uma definição deveras libertadora e que se opõe à hipótese mais amplamente aceita de que amamos instintivamente.  Nessa definição apresentada por bell hooks, o amor não está dado nas relações, e disto não escapam nem as relações familiares consanguíneas. Algumas mulheres recém paridas, por exemplo, relatam que não sentiam amor pelo seu filho no momento em que o viram pela primeira vez, apesar de existir um certo tabu nestes relatos (porque é praticamente um dever moral que uma mulher ao se tornar mãe seja imediatamente invadida pelo amor incondicional materno), existem puérperas que só vieram ter essa experiência de amor com seu filho uma semana, ou até meses após seu nascimento. Quando olhamos para o amor como uma ação, fica fácil entender porquê. No conjunto de cuidados, no compromisso ao atender as necessidades diárias para manutenção da vida, e através de outros ingredientes imprescindíveis a essa prática que falarei mais abaixo, a recém mãe, no processo de conhecer o seu filho ao mesmo tempo em que se descobre nessa nova função, vai em alguns casos, experenciar o amor. Muitas mulheres que são mães precisam ter uma vivência com seus filhos para gerar uma conexão amorosa.

Quando o amor é encarado como uma ação, ele nunca estará dado nos relacionamentos, ele é antes uma construção diária, que requer manutenção, presença, inteireza. Para amar verdadeiramente, bell hooks dirá que é preciso aprender a misturar alguns ingredientes: carinho, afeição, reconhecimento, respeito, compromisso, confiança, honestidade e comunicação aberta.

Ao contrário do que nos fizeram acreditar boa parte de nossa vida, o amor não é um sentimento; quando colocamos o amor nesse patamar, acabamos permitindo que práticas abusivas (opostas ao amor), sejam, muitas vezes justificadas. Ao encarar o amor apenas como um sentimento, facilmente concordaríamos que não controlamos nossos sentimentos e que em algum momento ele até poderia comprometer a razão, podendo provocar em nós, inclusive, certa cegueira. Quem nunca ouviu dizer que o amor é cego? “Loucuras” são cometidas em seu nome; o amor encarado dessa forma, muitas vezes se torna perigoso, sobretudo, quando olhamos para as relações românticas que tendem a fazer das mulheres vítimas de violência. E em casos extremos, muitas mulheres perdem a vida em nome do “amor”, os chamados “crimes passionais”, ou seja, alguém que matou por amar demais. Hooks afirma que pensar que as ações moldam os sentimentos, é uma forma de desvincular suposições convencionalmente aceitas como esta, de que o amor machuca e pode até matar.

“Quando entendemos o amor como vontade de nutrir nosso crescimento espiritual e o de outra pessoa, fica claro que não podemos dizer que amamos se somos nocivos ou abusivos. Amor e abuso não podem coexistir. Abuso e negligência são, por definição, opostos ao cuidado” (HOOKS, 2021).

Ao aprendermos definições falhas de amor no início da vida, teremos mais dificuldade de sermos amorosos quando amadurecemos, além de ser mais difícil identificar e romper ciclos abusivos. “A grande maioria de nós vem de famílias disfuncionais nas quais fomos ensinados que não éramos bons, nas quais fomos constrangidos, abusados verbal e/ou fisicamente e negligenciados emocionalmente, mesmo quando nos ensinavam a acreditar que éramos amados.” (HOOKS, 2021). A autora reconhece que para a maioria das pessoas, é ameaçador aceitar uma definição de amor que permitiria identificar que talvez o amor não estivesse presente em sua família. Afinal de contas, é comum ouvirmos dos nossos principais cuidadores, por exemplo, depois de uma surra, que aquilo era para o “nosso bem”, que “doeu mais em mim do que em você”. Hooks acredita que muitos de nós, se apega a uma ideia de amor que torna o abuso aceitável, ou que ao menos faça parecer que independente do que aconteceu, foi necessário ou que não foi tão ruim assim; que “preparou para a vida”, “construiu caráter” etc. Curiosamente, a autora relata que a maioria das pessoas criadas em lares excessivamente violentos ou abusivos evita aceitar qualquer crítica negativa as suas vivências. Em geral, muitos precisam de alguma intervenção terapêutica para começar a entender esses processos e assim, olhar para essas experiências da infância com alguma criticidade. “A infância é o chão sobre o qual caminharemos o resto da vida.” (LUFT, 2003); nessa perspectiva, curar nossa criança ferida é fundamental para construir relações saudáveis e quebrar ciclos geracionais de violência.

Começar a pensar no amor como uma ação, é uma forma de fazer com que qualquer um que use a palavra, assuma a responsabilidade e comprometimento, afinal de contas, a maioria de nós aceita que escolhemos nossas ações e mais ainda, que nossas ações tem consequências. “Se nós lembrássemos constantemente de que o amor é o que o amor faz, não usaríamos a palavra de um jeito que desvaloriza e degrada o seu significado. Quando amamos, expressamos cuidado, afeição, responsabilidade, respeito, compromisso e confiança.” (HOOKS, 2021).

É urgente definir o amor como uma práxis (ação transformadora), definições são pontos de partida fundamentais para termos clareza. “Quando interferimos nas suposições confusas de que o amor não pode ser definido, oferecendo práticas úteis, já estamos criando um contexto em que o amor pode começar a florescer.” (HOOKS, 2021). Por mais que essa clareza muitas vezes seja um processo doloroso e nos deixe cara a cara com a ausência, com o que nos falta, com o desamor, “confrontar o desamor de modo honesto e realista é parte do processo de cura.” (HOOKS, 2021). É a partir daí que reaprendemos, encontramos novas perspectivas que possibilita nossa reconexão com o amor de forma honesta, responsável e corajosa. “A definição marca nosso ponto de partida e nos permite saber aonde queremos chegar.” (HOOKS, 2021). Por fim, a autora acredita e torce que essa ideia de amor possa ser espalhada e incorporada em nossa vida, somente assim, será ferramenta de mudança e transformação social. Amar pode ser revolucionário.