Sebastião Pereira do Nascimento*
“Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos, como ao Senhor. Porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o salvador do corpo. De sorte que, assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres sejam em tudo sujeitas a seus maridos” (Efésios 5:22-23).
Como percebemos, desde sempre o sistema moral reinante entre a sociedade humana é o do patriarcado, o qual significa que a figura do homem é enxergada como um indivíduo que revela o domínio total sobre a mulher.
A meu ver, tanto a incompreensão religiosa quanto questões de ordens: cultural e social, na sociedade, suscitam formas distintas de violência de gênero, que não se limitam apenas à questão moral, mas a outros atos lesivos que vão desde assédio psicológico, emocionais, patrimoniais, financeiros, passando pela violência física e o feminicídio. Enraizada e apoiada no patriarcado, a violência contra a mulher está presente sistematicamente, em diferentes partes do mundo, tanto no espaço público quanto na vida privada, dentro de casa, no espaço de trabalho, em geral, imposta por pessoas que a mulher conhece, convive e em quem confia. Caso de parentes, cônjuges, amigos e pessoas com quem ela se relaciona.
Todas essas situações ocorrem, principalmente, por conta de uma visão distorcida do homem em relação à mulher e a posição que ela ocupa na sociedade. Na história ocidental, homem e mulher têm papéis assimétricos. A sociedade admite que o homem é o provedor, enquanto a mulher é submissa e não provedora. Da mesma forma, a sociedade acredita que o homem é resistente, capaz e independente, enquanto a mulher é frágil, confusa e dependente do homem que pode tomar decisões por ela, violando as escolhas, os desejos e a independência da mulher.
Não raro, essas violações resultam em crueldades contra a mulher, tanto por parte do homem delituoso quanto por parte do estado e da sociedade, por exemplo, como no caso — entre os muitos repetidos — da socialite mineira Ângela Maria Fernandes Diniz, 32 anos, morta em Búzios (RJ) com quatro tiros à queima-roupa, no dia 30 de dezembro de 1976 pelo namorado, Raul Fernando do Amaral Street, 40 anos, um playboy paulista conhecido como Doca Street.
Na época do julgamento, o advogado criminalista Evandro Lins e Silva levantou a tese da legítima defesa da honra (mesmo não constando do Código Penal brasileiro), no intuito de inocentar seu cliente, Doca Street — na tese da legítima defesa da honra, um homem poderia, em caso de adultério, matar a esposa ou namorada, sob alegação de que ela o teria traído. Foi o que alegou-se no julgamento de Doca Street, em 17 de outubro de 1979 no Rio de Janeiro.
Durante o julgamento, Evandro Lins e Silva transformou o assassino (que dizia ter sido “humilhado às últimas consequências”), em vítima; e a vítima, que a chamou de “vênus lasciva”, transformou em vilã da história.
Sobre a atuação dos advogados de defesa e de acusação, consta nos anais da imprensa os seguintes trechos desferidos pelos causídicos: “Senhores jurados, a mulher fatal encanta, seduz, domina…”, argumentou o advogado de defesa. “Às vezes, a reação violenta é a única saída”. Ao mesmo tempo que Evandro Lins e Silva tentava, com desprezo à mulher, reduzir a gravidade do crime, Evaristo de Moraes Filho, advogado de acusação, suplicava em favor da vítima: “Senhores jurados, esta moça já teve carrascos demais!”. Lins e Silva, defendendo o assassino com os argumentos de que a vítima era a culpada, dizia: “Absolvei-o, jurados, e tereis feito justiça”. Ao término do julgamento, por quatro votos a três, o júri — formado por cinco homens e duas mulheres — praticamente absolveu o réu e condenou a vítima.
O sicário de Ângela Diniz, Doca Street, foi condenado (tão somente) a dois anos de reclusão, com direito a sursis (dispensa do cumprimento de uma pena, no todo ou em parte). Como já tinha cumprido mais de um terço da pena, o réu saiu do tribunal pela porta da frente, aplaudido pela multidão que acompanhava o julgamento (que gerou repercussão nacional), marcado pelo machismo e sexismo tanto da defesa quanto da imprensa.
Assim, diante da sociedade, muitas mulheres continuam sendo assassinadas todos os dias e de diferentes maneiras por homens dotados de sentimento de posse, que não aceitam “perder” a mulher, como se ela fosse um objeto de sua propriedade. Homens que não admitem que a mulher possa romper barreiras e ir à frente de seu tempo, abrindo caminhos para além dos padrões convencionais da sociedade. Homens que pensam a mulher como um ser inferior, que não tem direito a ter suas próprias vontades e que está submissa à vontade do homem, devendo sempre fazer o que ele quer.
No que diz respeito à deplorável legítima defesa da honra, mais recentemente, em decisão unânime e histórica, o STF entendeu que o argumento da legítima defesa da honra — classificado pelo ministro Dias Toffoli, relator do caso, como “odioso”, “desumano” e “cruel” — contraria os princípios constitucionais da igualdade de gênero, da dignidade da pessoa humana e da proteção à vida e, por essa razão, proibiu seu uso, da investigação ao julgamento, por policiais, advogados e juízes.
Caso a tese seja usada, de forma direta ou indireta, o julgamento poderá até ser anulado. “A teoria da legítima defesa da honra traduz a expressão de valores de uma sociedade patriarcal, arcaica e autoritária”, declarou a presidente da corte, a ministra Rosa Weber. “Uma sociedade machista, sexista e misógina que mata mulheres apenas porque elas querem ser o que são, donas de sua vida”, completou a ministra Carmen Lúcia, que relembrou o caso de Ângela Diniz durante seu voto.
A propósito disso, quando Ângela Diniz foi assassinada, o crime de feminicídio ainda não existia no Brasil. Passou a vigorar a partir de 9 de março de 2015, quando foi aprovada a Lei 13.104. Desde então, assassinatos de mulheres, praticados em contexto de violência doméstica, familiar ou íntima de afeto, ou ainda, provocados pela discriminação ou menosprezo à condição do sexo/gênero feminino, passaram a ser considerados hediondos, com penas que podem chegar a 30 anos. Há agravantes, por exemplo, se o feminicídio for cometido contra gestante ou com filho recém-nascido, ou também praticado na presença de parentes da vítima.
Nada obstante, dados divulgados pelo Monitor da Violência, através do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, mostram que em 2022, o Brasil bateu recorde de feminicídios: 1,4 mil mulheres foram mortas pelo simples fato de serem mulheres – uma média de uma mulher morta a cada seis horas. É o maior número já registrado no país desde que a lei do feminicídio entrou em vigor, em 2015. Sendo o estado com a maior taxa de feminicídio, Mato Grosso do Sul, com média de 3,5 a cada 100 mil mulheres. Ainda segundo o Anuário de Segurança Pública do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), oito em cada 10 casos de feminicídio são cometidos pelo parceiro ou ex-parceiro da vítima.
Em face desse cenário, apesar das mulheres terem mais informações sobre as mais variadas formas de violência e a existência de diversos mecanismos especializados no combate à violência contra a mulher, há ainda certa dificuldade da sociedade em aceitar muitos atos invectivos contra mulheres em situação de violência doméstica, o que dificulta para a vítima uma tomada de decisão célere ou registrar um boletim de ocorrência, até mesmo pelo medo ou pela vergonha do julgamento da sociedade. No caso dos setores de atendimento à saúde da mulher violentada, tem acontecido com muita frequência a demora de reconhecer e lidar com esse tipo de violência.
Ainda hoje, vivemos numa sociedade machista e misógina onde a dominação das mulheres pelos homens é vista como algo natural. É como se a mulher não tivesse o direito de ser livre. Todavia, é preciso entender que quando há um homem dominador ou abusivo, a mulher não é obrigada viver debaixo de opressão. Como exemplo, ao se tratar de marido e esposa, a mulher tem todo direito de se defender e rejeitar as atitudes erradas do homem, a qual deveria receber todo apoio da sociedade, porque a culpa não é dela. O marido que abusa da falsa autoridade matrimonial precisa mudar, precisa se refazer, senão ele vai destruir seu casamento e, consequentemente, sua família.
No tocante a toda essa violência contra a mulher, sabemos que, além da crença religiosa (que coloca a mulher subalterna ao homem), existe a doutrina patriarcal (fortemente arraigada na sociedade), onde o homem enxerga a mulher como um objeto, algo de propriedade dele. No entanto, nenhuma mulher deve estar sujeita à servidão de um homem, nem viver um relacionamento tóxico, destrutivo e humilhante. A mulher merece ser respeitada do mesmo modo que é concedido o respeito ao homem, em todos os sentidos. Para mais, é terminante que a sociedade quebre paradigmas e se abdique de todas as formas de violência contra as mulheres, como forma de não assistirmos, em pleno século XXI, a atitude primitiva de um homem matar uma mulher, só porque é mulher.
*Filósofo, poeta, escritor e consultor ambiental. Autor de livros de poesias e ensaios filosóficos, além de diversas literaturas científicas.
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