OPINIÃO

Como no Cerrado, o agronegócio ameaça o lavrado

Como no Cerrado, o agronegócio ameaça o lavrado

Sebastião Pereira do Nascimento*

Dados do Instituto Brasília Ambiental (IBRAM) mostram que, a partir da década de 1970, o Cerrado, um sistema de áreas abertas conhecido pela ciência como Domínio Morfoclimático do Cerrado, se transformou numa estéril paisagem antropogênica, brutalmente impulsionada pela expansão da produção agropecuária. Essa transformação, modificou também vários aspectos socioeconômicos regionais, colocando o Brasil entre os principais produtores mundiais de commodities agrícolas.

No contexto natural, por se tratar de um macroecossistema o Cerrado desempenha um papel importante na regulação do clima regional e global. Ele ajuda a reduzir as temperaturas e controlar os padrões de chuva, fornece serviços ecossistêmicos vitais, como polinização de cultivos, controle de pragas naturais e purificação do ar e da água. Além de abrigar uma grande diversidade de espécies de plantas, animais e micro-organismos, contribuindo para a manutenção da biodiversidade global.

No entanto, diante dessas grandes monoculturas, o MapBiomas do Observatório do Clima (Belém, PA), infere que o Cerrado vem perdendo grande parte da sua cobertura natural, sendo uma das principais causas desse desgaste ambiental a intensa atividade agrícola, que desde 1985 cresceu mais de 500%, somando as áreas usadas para plantio e para pastagem de animais, tem-se uma área maior de que 75 milhões de hectares.

Outros estudos revelam também que essa perda vegetal do Cerrado vem promovendo alterações em muitas espécies da fauna, colocando gravemente várias espécies em risco de extinção e, ainda mais preocupante, afetando o equilíbrio da cadeia ecológica com a perda da biodiversidade regional. Por exemplo, a mortalidade de espécies não-alvo, como as abelhas. Afinal, são esses insetos os responsáveis pela polinização de cerca 80% das plantas angiospermas. Sendo os principais causadores desse extermínio das abelhas os venenos: Sulfoxaflor e Fipronil que, mesmo proibidos na Europa, seguem liberados no Brasil. Assim como o Acefato e o Atrazina, também banidos na Europa por causar doenças humanas e problemas ambientais, tem sido usado massivamente no país.

Em Roraima, ainda que numa ordem de grandeza menor, o lavrado também vem sendo ameaçado pelo avanço indiscriminado da monocultura, a qual vem sendo desordenadamente ampliada a cada ano, deixando um rastro de destruição na vegetação nativa e na composição da fauna local — sobre essa paisagem, o lavrado perfaz uma porção única de áreas abertas situadas no norte do Domínio Morfoclimático da Amazônia, que se estendem até ao escudo da Guiana, pelo menos cerca de 37.000 km² destas áreas situam-se no estado de Roraima.

Devido da sua heterogeneidade ambiental, o lavrado apresenta uma rica composição faunística, com centenas de espécies (de vertebrados e invertebrados) conhecidas pela ciência, com várias formas restritas a essas áreas abertas (algumas podendo ser endêmicas), o que torna essas espécies ainda mais sensíveis às ameaças produzidas pelas grandes monoculturas locais.

Junto à destruição da vegetação nativa e o impacto sobre a fauna, o agronegócio, por necessitar de grande extensão de terra para produzir e por estar distante dos suportes da natureza, necessita cada vez mais de insumos químicos, no intuito de compensar as perdas naturais, o que potencializa os efeitos deletérios ao meio ambiente. Além disso, vem a exposição dos trabalhadores aos agrotóxicos, o crescimento do êxodo rural, a concentração de renda no campo e os conflitos agrários que comprometem fortemente os pequenos agricultores e os povos indígenas.

A despeito dos agrotóxicos, o INCA, vinculado ao Ministério da Saúde, revela que com o uso maciço de agrotóxicos (muitos deles cancerígenos ou teratogênicos), aumenta a possibilidade dos trabalhadores que atuam nas lavouras, bem como os consumidores desses alimentos tenham maior possibilidade de contrair enfermidades graves como cânceres, distúrbios hormonais, má-formação genética. Apesar da legislação proibir o uso de muitos desses agrotóxicos potencialmente nocivos, o INCA aponta que há o uso camuflado desses produtos com maior toxicidade aguda, para os quais não existe limite seguro de exposição. Quando alguém entra em contato, já está em risco. Não há como estabelecer o limite.

Como bem evidenciado pelo Brasil afora, a grande monocultura, têm contribuído também para a escassez de alimento — por ser uma produção puramente exógena — e o aquecimento global. Além disso, as grandes agroindústrias vendem a ideia de que o uso de produtos transgênicos e a utilização de mais agrotóxicos são necessários para aumentar a produção agropastoril com pretexto de alimentar a população. Na verdade, no Brasil, o que assistimos atual são milhões de brasileiras passando fome ao lado de imensas monoculturas — dados do IBGE mostram que quem mais põe alimento na mesa do brasileiro é a agricultura familiar, a qual é constituída por pequenos produtores, povos tradicionais e extrativistas.  Por outro lado, quando há algum produto ofertado pelo agronegócio é um alimento envenenado e de baixo valor nutricional.

Portanto, se tratando da região de lavrado, ainda tão pouco compreendida tanto pela população roraimense quanto por parte da comunidade científica, é indiscutível o quanto esse ecossistema vem sendo exaurido pelas vigor do agronegócio, sendo os políticos locais defenderem com afã, sob a ordem do dia, que os agronegocistas avancem cada vez mais sobre o lavrado — jaz agonizante —, no intuito de satisfazerem seus interesses econômicos, sem, contudo, demonstrar nenhum trauma de consciência.

Aqui, imagino que seja difícil para alguém que, sem robustez na alma e sem vínculo com terra, possa compreender os processos relacionais homem e meio ambiente, onde por sua vez, leva a pessoa tratar a natureza com o desvelo que ela merece. No cerne dessa apatia, é aonde residem os políticos locais (muitos deles agronegocistas), que instigam seus pares à prática agrícola no lavrado sem maiores observâncias para as questões ambientais e socioculturais, num esforço centrado apenas nos bens primários, quando transformam o alimento em commodities, sem se preocupar com mais nada se não com dinheiro.

É preciso lembrar ainda que para produção da monocultura, é preciso que toda a cobertura vegetal seja sumariamente retirada da terra, desencadeando um doloroso processo de desertificação. E por cima de tudo, o cultivo de uma única espécie vegetal leva à exaustão do solo, provocando o esgotamento de seus nutrientes e, consequentemente, o empobrecimento nutricional da terra, o que requer o uso massificado de fertilizantes químicos e de agrotóxicos, empregados para o controle das pragas e das plantas daninhas.

Assim, o uso contínuo desses defensivos agrícolas contribuem para a contaminação dos lençóis freáticos e de outros recursos hídricos, causando perda da vida aquática e da biodiversidade em geral. Para mais, vem também a disseminação de sementes transgênicas que levam a perda de variedades tradicionais, as quais, além de se constituírem como patrimônio genético dos povos do lavrado, são adaptadas às condições ambientais locais e apresentam maior resistência a pragas.

Contudo, com um pouco de robustez na alma, é possível gerar uma produção agrícola e pecuária, associada a proteção do lavrado e da sua biodiversidade, promovendo o desenvolvimento sustentável, com especial respeito aos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas e das práticas cotidianas dos agricultores familiares que habitam nesse sistema de áreas abertas.

O lavrado possui uma riqueza no que se refere à fauna, à flora e aos sistemas aquáticos, que pode gerar uma gigantesca fonte de recursos alimentares, medicinais, turísticos, culturais e econômicos. Além disso, no que se refere às questões climáticas, tanto no âmbito do lavrado quanto de outras regiões da Amazônia, é fundamental procurar não repetir os erros que vêm sendo praticados no Cerrado do Brasil central, como forma de evitar as recorrentes tragédias ambientais acontecidas em várias regiões do país.

*Consultor ambiental, filósofo e escritor – um dos autores do livro “Poemas, Contos e Microcontos”. Obra coletiva publicada em 2022 pela Editora da UFRR.

** Os textos publicados nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião da FolhaBV