João Paulo M. Araujo
Professor no curso de filosofia da UERR
No cenário atual do que ainda podemos chamar de filosofia analítica, pressupostos naturalistas são quase que unânimes na atividade dos filósofos. Um desses pressupostos é a teoria da evolução. Ela está presente não só na filosofia da mente, mas também na ética, estética, política e epistemologia. Assim, uma maneira de abordar todas essas questões de uma perspectiva evolucionista é através da filosofia da biologia. A filosofia da biologia pode ser entendida como uma nova tendência em filosofia que pode lançar luz sobre as áreas acima citadas, tomando como base explicações mais elementares que surgem a partir de reflexões filosóficas sobre dados biológicos. Como outros preferem, pode também ser compreendida como um braço da filosofia da ciência que trata do conhecimento biológico e seus fenômenos.
Seus problemas e reflexões não são desenvolvidos exclusivamente por filósofos. Muitas vezes encontramos cientistas que refletem sobre seu próprio trabalho como os biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela cuja as reflexões terminam impactando no cenário filosófico como no caso da abordagem enativista da cognição. Além do mais, também é possível encontrar autores que possuem dupla formação em filosofia e biologia como o caso de Peter Godfrey-Smith. Se entendemos a filosofia da biologia como um braço da filosofia da ciência, sua marca distintiva é prover uma explicação capaz de alcançar generalizações sobre a biologia enquanto ciência. Dessa forma, a filosofia da biologia tenta prover explicações para questões elementares de filosofia da ciência como causalidade, acaso, progresso, história e reducionismo. Epistemologicamente, ela tenta explicar como o conhecimento é adquirido e modificado tomando como base explicações evolucionistas.
Aqui já deve estar claro que a teoria da evolução tem um grande peso nas explicações dentro da filosofia da biologia, a teoria da evolução é o grande pano de fundo de suas explicações. Como acentua Bence Nanay (2008), “já que os seres humanos evoluíram da mesma maneira que outros animais, a mente humana, a linguagem, o conhecimento, a sociedade, a arte e a moralidade deveriam ser todas examinadas como fenômenos biológicos”. De Daniel Dennett à Ruth Milikan, passando por autores de uma geração mais nova como Alva Noë, vemos explicações biológicas figurando como elementos chaves em suas discussões filosóficas. A razão é muito simples, se acreditamos que a teoria da evolução tem um papel importante na explicação de fenômenos biológicos, então podemos supor que essas explicações também sejam úteis em outros níveis explicativos como, por exemplo, nas questões filosóficas que possuem pontos de interlocução com a biologia. O problema é que muitas vezes é fácil incorrermos em alguma espécie de reducionismo.
Uma dessas perspectivas que termina fazendo isso é a teleossemântica. Apesar de ser um programa mais específico, isto é, sem pretensões gerais, a teleossemântica objetiva explicar a intencionalidade da linguagem e do pensamento, ou seja, a natureza do significado de nossas palavras juntamente com o conteúdo de nossos pensamentos. Apesar de muitos adeptos que endossam a visão teleossemântica do significado e dos conteúdos representacionais, a obra pioneira nesse tipo de abordagem é o trabalho de Ruth Milikan (1984) intitulado Language, Thought and Other Biological Categories. Um outro expoente bastante conhecido no cenário filosófico é o filósofo Fred Dretske. Portanto, de acordo com a teleossemântica, os conteúdos de nossas representações mentais dependem de funções dos sistemas que as utilizam ou as produzem. A noção de função aqui é tal como encontramos na biologia ou em explicações neurobiológicas. A função da grande área visual, por exemplo, é processar a visão, a função do córtex pré-frontal (dentre outras coisas) é possibilitar (ou determinar) nossos processos de tomada de decisão, etc. Logo, defensores da teleossemântica entendem que essas funções são aquilo para o qual os objetos que possuem certas funções foram evolutivamente selecionados.
Para uma explicação do significado e dos conteúdos representacionais do nosso pensamento, é lugar comum a noção de que tudo o que pensamos tem como objetivo fazer referência a alguma coisa. Do ponto de vista da intencionalidade, nossos pensamentos são sempre pensamentos de alguma coisa. Para que isso possa ficar mais claro, pensemos no seguinte exemplo: se eu tenho em mente um pensamento de cupuaçu, isso significa que o meu pensamento é sobre um cupuaçu. Em termos representacionais, o conteúdo de meu pensamento é um cupuaçu; ou seja, o conteúdo mental é explicado pela relação entre o cupuaçu (objeto) e o pensamento sobre o cupuaçu (conteúdo). De uma perspectiva teleossemântica, a explicação dessa relação entre objeto e conteúdo representacional ocorre sob um pano de fundo evolutivo. Com observa Nanay (2008), “um estado mental R de um organismo O tem o conteúdo X se o fato de que R indica X contribuiu à sobrevivência dos ancestrais evolutivos de O”. Dito de outra forma, o meu pensamento tem o conteúdo “cupuaçu” se o fato de que pensamentos de cupuaçu indicam que cupuaçus contribuíram para a sobrevivência de meus ancestrais evolutivos. É como se houvesse uma conexão necessária entre conteúdos mentais e sobrevivência da espécie.
Não precisamos refletir muito para perceber que essa perspectiva do conteúdo mental resvala num certo reducionismo explicativo, pois o que torna possível o conteúdo de nossos pensamentos é justamente sua história evolutiva. Se meu pensamento é sobre cupuaçus, maçãs ou qualquer outra coisa, o que determina o seu conteúdo não é outra coisa senão o papel que esses estados mentais desempenharam num longínquo passado evolutivo. Bence Nanay (2008) elabora uma experiência de pensamento que figura como um contraexemplo a essa visão. Ele afirma que se um organismo idêntico a outro em cada molécula fosse criado (um clone, por exemplo), ele não poderia ter pensamentos dotados de conteúdos justamente porque lhe faltaria toda a história evolutiva que teria como função fixar o conteúdo de seus pensamentos. Via de regra os filósofos que endossam a teleossemântica tendem a aceitar essa consequência ilustrada por Nanay que, por sua vez, reafirma o reducionismo da sua abordagem. Entretanto, é possível propor uma objeção ao contraexemplo de Nanay. Poderíamos objetar que, mesmo um clone, carregaria todo o material genético do organismo que foi clonado e que, em consequência disso, garantiria a história evolutiva de um organismo e, portanto, da explicação teleossemântica do conteúdo mental.