Indígenas no contexto urbano de Boa Vista (RR): a resistência geocultural ancestral

Éder Rodrigues dos Santos

Evandro Pereira Wapichana

Mestre Biriba

Dados do Censo do IBGE (2022), demostram que cerca de 90% das cidades do país têm moradores indígenas. São aproximadamente 1,7 milhões de pessoas distribuídas em 4.832 cidades de todos os estados brasileiros. A população indígena em Roraima corresponde a 15,29% do total de 636.303 habitantes, ou seja, totalizam 97.320 pessoas, que é a quinta maior do Brasil. Uma a cada sete pessoas que vive no estado se autodeclarou indígena. Deste total, mais de 20% dos indígenas ocupam espaços urbanos ou dividem seu tempo vivendo nas cidades e nas comunidades. Boa Vista é nossa “maloca grande”. Ainda assim, estas populações enfrentam a invisibilidade e o preconceito diário de uma estrutura de estado construída no paternalismo assistencialista e de uma sociedade racista e misógina.

Todos sabem que não foram os indígenas que migraram ou que migram para o contexto urbano. Sabe-se que, do ponto de vista histórico da formação territorial amazônica, são as cidades que foram construídas nos espaços anteriormente habitados ou utilizados pelos indígenas. Desde o século XVIII, a região do vale rio Branco, no extremo norte brasileiro, foi invadida por europeus e os habitantes locais foram escravizados, grupos locais foram eliminados pela violência dos brancos. Às margens do rio Branco, do que conhecemos como cidade de Boa Vista, há registros da existência de antigas aldeias. Relata-se que na fronteira Guiana e Brasil, os Wapichana vivem há cerca de cinco mil anos. Portanto, foram os brancos que chegaram impondo regras, controlando corpos e promovendo a exploração.

Como aponta Luciana Melo, no texto “Populações Indígenas na Cidade de Boa Vista – Roraima: Dinâmicas Sociais e processos de (re)significação identitária em contexto urbano (2014): “Há, contudo, um ineditismo nesta relação espacial que consiste, em linhas gerais, nas múltiplas maneiras com as quais a capital é apropriada na contemporaneidade, os significados conferidos aos espaços de sociabilidade e na constante reconfiguração das identidades étnicas”. Nestes espaços, a cultura tem na sensibilidade das mulheres e artistas a reprodução do modo de vida e suas visões de mundo.

Em Boa Vista (RR), observa-se um fenômeno político-social importante na afirmação da imagem positiva do indígena, que é o processo de organização das associações indígenas no contexto urbano. Estas entidades promovem muitas inciativas a favor dos seus membros, que vão desde a orientação para atendimento públicos, como saúde e educação, assim como na geração de renda, com a produção de artesanatos, manifestações culturais e culinária. A par disso, a formação de bandas musicais, de coletivos culturais, somado à ampliação dos cursos de graduação destinado aos indígenas na Universidade Federal de Roraima (UFRR), são fenômenos que têm promovido a inserção de jovens e adultos no contexto urbano, assim como tem ampliado a discussão dos seus desafios e da importância da cultura indígena nos espaços urbanos.

Dirigida por indígenas, em sua maioria mulheres, que vivem no contexto urbano, atualmente registra-se a existência de cinco associações: Associação Estadual Kuaikri (bairro Nova Cidade), Associação Cultural do estado de Roraima Kapoi (bairro Aracelis); Associação Dunui Sannau (bairro Aracelis), Associação Estadual Kamuu Kandan (bairro São Bento) e Organização dos Indígenas da Cidade (ODIC) (Bairro São Bento) que reúnem milhares de famílias nos bairros da zona oeste de Boa Vista.

Em pesquisas para elaboração de uma cartografia social, sob coordenação da Universidade Federal de Roraima (UFRR), ficaram evidentes as demandas comuns às famílias que são: trabalho, saúde, educação, transporte, infraestrutura, saneamento, alimentação, lazer e o enfrentamento ao preconceito e a discriminação. No campo da cultura, a demanda é pela implantação de um Centro Cultural Estadual Indígena destinado à exposição e comercialização de artesanatos e para manifestações culturais, assim como a estruturação física das sedes das associações.

As associações indígenas sediadas na capital são núcleos de resistência. Há três grupos de artesãos, três grupos de dança tradicional e três grupos musicais criados entre as associações. Como exemplo, temos observado de perto o trabalho do grupo de dança Diri Diri, liderado pela presidente Melania Pascoal, da ODIC, no bairro Aracelis que soma-se aos demais. O grupo reúne jovens e adultos que produzem seus instrumentos a partir do cultivo de plantas no próprio quintal da associação, tecem suas roupas, fazem o artesanato para as apresentações, sempre embaladas ao som autoral do músico e compositor indígena Laurence Albert que rege o grupo por meio dos teclados, em um hibridismo do popular forró com a tradicional dança do Parixara. Laurence contabiliza a composição de 45 canções com letras na língua materna (Wapichana).

Os eventos da entidade são ricos em expressões e símbolos da cultura indígena. Mesmo com espaços reduzidos para as apresentações, nesse e em vários eventos de outras associações, podem ser observadas o cuidado dos anfitriões com a culinária tradicional, a exposição de artesanato como chocalho; cesto variados, vassouras, cocar de pena de arara, flecha, arco, grafismo com urucum, ao sabor da damurida de peixe (caldo) e pajuaru (bebida típica). As datas comemorativas são lembradas com carinho pelos integrantes que trazem suas famílias e convidados para conhecer o trabalho desenvolvido com muita luta e persistência.

Valorizar as diferenças culturais no contexto urbano deve ser papel do estado e da sociedade envolvente com vista a garantir a cidadania e assim, buscar eliminar as assimetrias em que os povos indígenas estão submetidos. A cultura indígena presente das zonas urbanas é o resultado da resiliência e um potente marcador territorial dos povos da Amazônia.

Éder R. dos Santos é jornalista, sociólogo, mestre e doutorando em Geografia; membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Modos de Vidas e Culturas Amazônicas da Universidade Federal de Rondônia; da Mostra Internacional do Cinema Negro (SP); do Comitê Pró-Cultura Roraima. É presidente da Associação Roraimense de Cinema (Arcine).

Evandro Pereira Wapichana é sociólogo, mestrando em Antropologia Social com experiência em gestão pública, membro do Comitê Pró-Cultura Roraima e consultor das associações indígenas no contexto urbano.

Jefferson Dias – (Mestre Biriba), é mestre em Preservação do Patrimônio Cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN; Especialista em Filosofia da Religião (UERR), Pós-graduado em docência do nível Superior e Bacharel em Direito e Pós-graduando em Compliance, Governança Corporativa e ESG. Conselheiro Estadual de Promoção da Igualdade Racial do Estado de Roraima – CONSEPIRR, Membro do grupo de Estudo e Pesquisas em Africanidades e Minorias Sociais (UFRR), membro do Comitê Gestor da salvaguarda da Capoeira de Roraima e do Comitê Pró-Cultura Roraima, Membro da Federação Roraimense de Capoeira – FERRCAP, Mestre de Capoeira pelo Grupo Senzala e Fundador do projeto social Instituto Biriba – Educar para transformar.