Éder Santos
Jefferson Dias (Contramestre Biriba)
O curta ‘Capoeira em Roraima, nossa roda, nossa raiz’ (Doc, 10min, 2018) é a imagem em movimento do fenômeno que é patrimônio cultural da humanidade reconhecido pela UNESCO. Traduz o Brasil construído pelas mãos e pela arte do africano da diáspora em mistura orgânica com os povos originários. Gravado em Roraima com falas de mestres, contramestres, apoiadores, gestores públicos e entusiastas da capoeira de Roraima e do Amazonas, o curta faz breve resumo das conquistas resultantes da criação da Salvaguarda da Capoeira em Roraima.
O trabalho coletivo é a expressão da união de vários grupos culturais vinculados ao Comitê Gestor da Salvaguarda da Capoeira de Roraima e à Federação de Capoeira de Roraima (FERRCAP), que tem alcançado destaque político e cultural na última década. Por meio da potência telúrica das apresentações filmadas e organizadas no filme, em diversas localidades do estado, o trabalho visual e sonoro, realizado pelo Comitê Gestor e dirigido pelo contramestre Biriba e Mestre Caimbé, com produção da Platô Filmes e financiado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), permite compreender o protagonismo e resistência da cultura de afirmação positiva da imagem afroquilombola na Amazônia do extremo norte.
A capoeira, enquanto fenômeno de luta, resistência, união e arte, tem brilhado no cenário cultural e político nessa região de tríplice fronteira norte, viajando para outros países. Sua ginga, ritmo, atabaques e berimbaus sacudiram o dia 12 de dezembro de 2022, quando a Câmara Municipal de Boa Vista homenageou a arte e seus mestres, projetando midiaticamente o valor da capoeira e discutindo seus desafios. Uma pedagogia da paz e da união que é a tradução da tradição da cultura africana com seu Ubuntu, que é a filosofia da coletividade, solidariedade, generosidade e harmonia entre os seres humanos; uma circularidade e tamboralidade da herança epistêmica africana que, junto com a cultura indígena, marcam a rica e diversa cultura brasileira com suas cores, performances e sons.
A capoeira em Roraima já tem o reconhecimento da Roda de Capoeira e do Ofício dos Mestres de Capoeira em Roraima que foi concedido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Boa Vista tem leis que reconhecem o dia municipal da Capoeira, assim como patrimônio histórico imaterial e a Federação como Bem de Utilidade Pública municipal. O estado, por sua vez, aprovou em 2022, o projeto de Lei que instituiu o Dia Estadual do Capoeirista, comemorado em 18 de outubro e do Ofício de Mestre de Capoeira. Da mesma forma, foi aprovado o projeto de lei que reconhece a capoeira do estado como patrimônio histórico e cultural de natureza imaterial. Atualmente, tramita na Assembleia Legislativa de Roraima (ALE-RR) um projeto de lei estadual de autoria do CM Biriba e de iniciativa da FERRCAP para a valorização da capoeira e seu profissional nos aspectos esportivos e educacional. São fenômenos que ocorrem na dimensão política, pois a história e o compromisso social da capoeira estão mais do que consolidados no estado.
Sobre este prisma, a capoeira em Roraima, ainda enfrenta enormes desafios. A ausência de políticas públicas e culturais por parte do estado quanto a valorização do profissional; a falta de espaços públicos para a inserção de novos trabalhos; a falta de fomento para a realização dos eventos de capoeira; enfim, são diversas as demandas que o profissional de capoeira enfrenta no seu dia a dia para continuar contribuindo para formação da sociedade roraimense. Mesmo assim, estima-se que indiretamente mais de quinze mil pessoas circulam a roda de capoeira e todo o seu movimento cultural. Um número expressivo levando em consideração toda a ausência de políticas públicas voltadas para a arte.
Em Boa Vista, a capoeira está inserida em diversos bairros. No estado, em diversos municípios. Os grupos de capoeira são responsáveis por gerar um mercado cultural por meio da econômica criativa. Seus eventos de capoeira nacional e internacional, além de fomentar o turismo, a culinária, o artesão, as empresas de confecção, entre outros, também estabelecem para quem frequenta a arte de forma direta e indireta, a potência que tem um saber cultural disseminado por meio dos diversos profissionais de capoeira, demonstrando uma raiz cultural implantada há mais de três décadas em nosso estado.
Na capoeira, costuma-se dizer: “Berimbau está fazendo o chamado”, para o capoeirista, significa que a roda vai começar, o jogo vai iniciar, e que todos devem estar atentos aos sentidos que nela, o ser humano, possa alcançar. Transcende o Ser, é algo fora da imaginação, está fora do corpo, dos sentidos comuns. Somente quem vivencia sabe o quanto que o capoeirista ao jogar, ao cantar, tocar, ensinar a arte, percebe o íntimo do outro, é uma troca sentida de valores, entre ensinantes e aprendentes. Será um real sentido da vida em meio ao caos em que vivemos, no qual a distância é o que prevalece? Assim, cuidar do outro é mais que necessário. É preciso termos memórias afetivas sociais e culturais.
Nesse sentido, a produção audiovisual, contribui para a preservação da memória identitária da capoeira do estado, bem como, ser um instrumento de alerta a todos sobre as dificuldades enfrentadas. Mesmo assim, a capoeira enquanto bem de resistência sociocultural tem, com seus profissionais, buscado esforços para a sua continuidade em Roraima. A roda não pode parar e as gerações futuras de profissionais já estão sendo formadas. Cada vez mais, por meio do repasse dos saberes culturais que a circundam, mais crianças, jovens e adultos são inseridos dia após dia na roda de capoeira.
Somente dessa forma, a prática da capoeira enquanto ferramenta de transformação social, continuará contribuindo para enfrentamento da distância, do caos de cada um, e da sociedade. “Iê! Viva meu Deus! Iê, viva meu mestre quem me ensinou!”, já diz o capoeirista agachado ao pé do berimbau.
Link do documentário “Salvaguarda da Capoeira em Roraima”: https://www.youtube.com/watch?v=ZBeAV_WcGhk
Éder Santos é presidente da Associação de Cinema de Roraima, jornalista, sociólogo, doutorando em Geografia pela UNIR, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Modos de Vidas e Culturas Amazônicas (UNIR), da Mostra Internacional do Cinema Negro (SP) e do Comitê Pró-Cultura Roraima.
Jeferson Dias – (Biriba), é mestre em Preservação do Patrimônio Cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN; Especialista em Filosofia da Religião (UERR), Pós-graduado em docência do nível Superior e Bacharel em Direito. Membro do grupo de Estudo e Pesquisas em Africanidades e Minorias Sociais (UFRR). Contramestre de Capoeira pelo Grupo Senzala e Fundador do projeto social Instituto Biriba. Membro do Comitê Gestor da salvaguarda da Capoeira de Roraima e Membro do Comitê Pró-Cultura Roraima. Foi Presidente da Federação Roraimense de Capoeira (2019 à 2022). Foi professor de Direito Penal, Ética, Bioética e Legislação Trabalhista na instituição Ser Educacional.
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