OPINIÃO

O Deus poeta

Walber Aguiar*

Que o poeta nos encaminhe e nos proteja (Drummond)

Era um dia como outro qualquer. Talvez nem fosse. Dia de entender por quem os sinos dobram. De tentar compreender por que um só Deus ao mesmo tempo é três. De dançar, conforme textos de Manuel Bandeira, com o Deus que está tanto na poesia quantos nos chinelos, tanto nas coisas loucas quanto nas disparatadas.

Assim, não dá pra encarar o divino no quadro estereotipado dos “artistas” do legalismo, dos “mestres” da religião farisaica, dos escritores da letra morta. Não dá pra conceber aquele Deus de queixo comprido, com cara de São Benedito, pois o rosto do Sagrado sempre tem que comportar o brilho das cores, a leveza do infinito, a efetividade da palavra poética.

Ora, ao elegermos um projeto de espiritualidade integral, ou holística, carregamos na bagagem cotidiana o louvor, o lazer, o trato com o dinheiro, a coisa pública, a indignação, a palavra profética contra os governantes corruptos e tudo aquilo que consiga comportar a vida. Sem dúvida, a arte aparece como elementos redutivos do ser em conflito conseguem mesmo e com a complexidade existencial que o circunda.

Com isso, o Deus poeta se manifesta. Quando Paulo diz que somos feitura dele, quer dizer que somos poesia de Deus, verso do sagrado, estilização do autor de todas as palavras. A arte de mexer com as letras e dar significado a tudo passa pela angústia de Drummond, quando o mesmo diz: Meu Deus / por que me abandonaste/se sabias que eu não era Deus/ se sabias que eu era fraco…

Também pela poética romântica de Vinicius de Moraes, pelo toque estilizado de Allinge Mafra Mcnight. Deus se revela na face de Ferreira Gullar, com seu canto de protesto, sua rebeldia, seu desejo de entender a dualidade do universo no poema traduzir-se. Também figura o divino na arte de Thiago de Mello, o poeta de Barreirinha, quando este traduz para vários idiomas sua declaração universal dos direitos do homem, onde menciona  que a verdade será servida antes da sobremesa…

Ora, se Deus se reveste de simplicidade e calça as sandálias do pescador, isso pode ser revestido de poesia. No entanto, não dá pra ficar contando estrelinhas e rimando o universo sem a gravidade da palavra profética. Deus consegue vaticinar com gravidade, ainda que carregue consigo um carrinho de mão cheio de flores que enfeitam e dão cheiro à podridão pela qual somos abrigados a passar.

Uma das letras mais fascinantes de Renato Russo diz: venha/ meu coração está com pressa/ e vem chegando a primavera/ nosso futuro recomeça/ venha que o que vem é perfeição… Faz lembrar Salomão, quando diz que “a esperança que se adia faz adoecer o coração”. Embora as cabeças roxas da religião distorçam as palavras e hipertrofiem a graça do Deus poeta, este vai continuar redimindo através do belo e da sensibilidade das manifestações artísticas. Por isso, temos que captar cada detalhe que Deus deixa cair no caminho em forma de graça e ludicidade. O que passar disso pertence aos caretas, que não gostam de poesia nem tiram Deus pra dançar…

*Poeta, professor de filosofia, historiador e membro da Academia Roraimense de letra