Sebastião Pereira do Nascimento*
Apesar do longo tempo de atuação no campo da zoologia, foi durante a minha formação em filosofia, por sugestão da minha professora de “Antropologia Filosófica”, que tive os primeiros contatos com a literatura de Frans de Waal, um dos mais eminentes primatólogos do mundo, que morreu no último dia 14, deixando um legado indelével na comunidade científica internacional. Quanto aos primeiros contatos com a literatura waaliana, se fez por meio do livro “Primatas e filósofos: como a moralidade evoluiu”.
Uma obra requintada, onde o autor se embasa em fundamentos biológicos e filosóficos para sedimentar robustos questionamentos sobre a natureza de algumas espécies de primatas (a exemplo dos chimpanzés), demonstrando os princípios da natureza humana nesses animais, que entre os primatas atuais, são nossos parentes mais próximos.
Assim, a partir dessa iniciação literário, passei ter contato com outras abras de Frans de Waal, ao qual hoje, neste espaço, faço uma singela exaltação in memoriam, abonada pelo texto de Reinaldo José Lopes, colunista de ciência da Folha de São Paulo, que há poucos anos fez uma acurada referência ao primatologista pela ocasião do lançamento no Brasil de uma de suas mais importantes obras: “Eu, Primata: por que somos, como somos”. Neste livro, o aclamado cientista traça o comportamento e a evolução de algumas espécies de primatas, mostrando dois espelhos que refletem lados opostos da nossa personalidade humana, e revela elucidativamente o primata que vive em nós. Sem mais delonga, deixo aqui na íntegra o texto de Reinaldo José Lopes:
“O passarinho tinha se esborrachado contra a parede de vidro da jaula e caído no chão. Kuni, uma fêmea de bonobo ou chimpanzé-pigmeu (Pan paniscus), caminhou até a ave com uma expressão preocupada e tentou colocá-la de pé. Nada. Pegou o pássaro com delicadeza, subiu até a árvore mais alta de seu recinto envidraçado e abriu suas asas com os dedos, com cuidado para não machucá-lo. Lançou a ave pelo ar feito um aviãozinho de papel, mas ela voltou a aterrissar dentro da jaula. Kuni se aproximou do passarinho de novo e montou guarda do lado dele o dia todo, evitando que outros macacos curiosos o tocassem. No fim do dia, ele finalmente conseguiu sair voando.
A cena acima aconteceu no Zoológico de Twycross, no Reino Unido, e é um dos relatos impressionantes de “Eu, Primata”, livro do primatólogo Frans de Waal. Um dos maiores especialistas do planeta no comportamento dos bonobos, os estranhos “primos” dos chimpanzés, cuja sociedade matriarcal, relativamente pacífica e permeada pela prática sexual fascina os cientistas há tempos. Por outro lado, entre os chimpanzés são os machos que dominam, contaminando a vida social com sua característica mistura de agressividade, despotismo e xenofobia. Com a visão tradicionalmente pessimista da natureza humana que domina nossa cultura, não é à toa que chimpanzés, e não bonobos, sejam os mais citados pelos estudos sobre a origem de nossa espécie. A pergunta fundamental de Waal no livro é: será que isso está mesmo correto?
Depende, responde o primatólogo. Waal cunha a feliz metáfora do “primata bipolar” para se referir aos seres humanos modernos. Em outras palavras, oscilamos entre os polos opostos de chimpanzés e bonobos, combinando as melhores e as piores características desses dois primos evolutivos de primeiro grau. Convém lembrar que, como a separação entre as linhagens de chimpanzés comuns e bonobos é muito recente, tendo acontecido há talvez uns dois milhões de anos, a distância evolutiva entre eles e nós é, na prática, idêntica.
[No livro, “Eu, Primata”, o primatólogo] explora de forma saborosa e bastante exaustiva a complexidade social e mental dos grandes macacos, em especial a dupla de chimpanzés. Waal, que hoje trabalha na Universidade Emory, em Atlanta, conviveu com grandes bandos de ambas as espécies em cativeiro — situação em que a mesma dinâmica “política” complexa da natureza ressurge em zoológicos.
As diferenças físicas entre chimpanzés e bonobos parecem ser um prenúncio das diferenças sociais e de temperamento. Facilmente reconhecível por seu “alinhado cabelo repartido ao meio”, como diz de Waal, o bonobo também tem lábios rosados e corpo delgado, enquanto o chimpanzé é musculoso — quase a diferença entre um bailarino e um pugilista. Enquanto os chimpanzés machos espancam fêmeas e se envolvem em “guerras” com bandos vizinhos, as fêmeas dos bonobos aprenderam a se unir politicamente, tomando as rédeas do bando e comandando encontros intergrupais, geralmente pacíficos.
A ferramenta fundamental desse tipo incomum de sociedade é o sexo. Os bonobos costumam surpreender seus tratadores humanos ao lhes dar sensuais beijos de língua. De fato, a “cola” da sociedade dos bonobos é a atividade sexual, envolvendo fêmeas com machos, fêmeas com fêmeas (uma esfregação frenética de clitóris ajuda a manter os elos entre elas), machos com machos e até adultos com filhotes. Tensões na hora de dividir comida? Sexo. Incertezas sobre a hierarquia do bando? Sexo. Encontro com um bando desconhecido? Sexo. O resultado é um nível de violência que, embora não seja inexistente, é muito baixo.
[Sobre] os sentimentos morais, Waal argumenta que as semelhanças entre o comportamento social dos grandes macacos e o dos humanos são profundas. Para ele, as diferenças são só de grau: os mesmos elementos básicos, como a necessidade de ser leal aos amigos, recompensar aliados, punir transgressores e intuir os desejos e as necessidades dos outros.
O elemento unificador nessa trama complicada é, para o primatólogo, a presença das emoções morais básicas. Segundo Waal, a noção de certo e errado que guia as sociedades humanas hoje brota do solo das emoções que compartilhamos com os grandes macacos. A mais importante delas é a empatia, tão bem demonstrada pela capacidade de Kuni de lidar com o passarinho ferido e se preocupar com ele. Em termos técnicos, essa capacidade é definida como “teoria da mente”: conseguir imaginar que outros seres no mundo, além de nós mesmos, possuem sua própria mente, com capacidade de sentir dor, medo, planos para o futuro e vontades.
Assim, bonobos e chimpanzés consolam companheiros tristes e assustados, cuidam de membros do mesmo bando que estão doentes, aleijados ou idosos. Talvez até demonstrem gratidão e senso de justiça. Segundo Waal, são capacidades emocionais, e não racionais, e que teriam ficado profundamente gravadas pela evolução na nossa própria estrutura mental — tanto que são respostas automáticas e viscerais das pessoas diante do que é certo ou errado.
Essa última afirmação ainda precisa ser posta à prova mais detalhadamente pela ciência. De um jeito ou de outro, Waal consegue dar um sabor um bocado diferente à velha lição da biologia evolutiva — a de que quase todas as características que nos definem como espécie são meros aperfeiçoamentos do que se vê no reino animal. Esse tipo de afirmação costuma ser visto de forma negativa, como uma degradação da nossa humanidade — afinal de contas, não passamos de macacos.
Porém, parece que esse é mais um dos casos nos quais o copo tanto pode estar meio vazio quanto meio cheio. Observar os grandes macacos e perceber que o reservatório de amor e compaixão — trevas à parte — do mundo natural não se restringe a nós é confortador. Para quem se pergunta sobre a solidão cósmica da humanidade, parece que não é mais preciso ficar olhando as estrelas: chimpanzés e bonobos mostram, sem a menor sombra de dúvida, que não estamos sozinhos por aqui, afinal.”
*Filósofo, escritor e consultor ambiental. Autor dos livros “Sonhador do Absoluto” e “Recado aos Humanos” (CRV). Coautor dos livros “Vertebrados Terrestres de Roraima” (BGE) e “Pandemia: Poemas, Contos e Microcontos” (EdUFRR). Coeditor da revista científica “Biologia Geral e Experimental”.