OPINIÃO

O Veneno da Serpente

O Veneno da Serpente

(Parte I)

Sebastião Pereira do Nascimento*

Em dado momento, quando o cientista Dione Morel fala da pretensão de sair mais uma vez em busca do seu mais enigmático achado zoológico em plena floresta amazônica, sua esposa Eloá Morel, um tanto desapontada, vira-se para o eminente cientista e pergunta:

— Você já tentou tantas vezes encontrar isso… Será que vai conseguir desta vez?

De maneira estoica, Dione Morel responde.

— Talvez. Não custa tentar.

É provável que os colegas de trabalho de Dione Morel também tenham dito algo parecido quando o cientista, especialista em ofiologia, anunciou que faria e talvez fosse pela última vez, uma exploração científica por uma área remota da Amazônia, no intuito de encontrar uma serpente que para ele seria um dos maiores achados científicos dos tempos modernos.

Não seria a primeira vez que Dione Morel viajaria pela Amazônia. Mas desta vez poderia ficar até um longo tempo longe de casa, visto pretender explorar uma área geográfica inóspita situada no ventre da Amazônia. Desta vez, sua esposa Eloá Morel não iria e também levaria pouca gente, pois uma excursão científica com muitas pessoas tem seus custos e seus inconvenientes.

O interesse pela serpente: ainda neófito na ciência, Dione Morel teve acesso a uma nota científica datada de alguns séculos atrás, escrito em pequenas letras garrafas sobre um papel amarelado, o qual mencionava o caso de um aventureiro estrangeiro que sofria de uma doença neurodegenerativa, que ao fazer uma incursão pela Amazônia, foi picado por uma cobra de veneno super potente, mas que o estrangeiro não só sobreviveu, como também o incidente proporcionou a cura da doença neurológica. Mas intrigante ainda é que a nota, embora assinalasse o caso para a Amazônia, não citava a localidade exata de ocorrência do animal. A escrita se resumia em poucas informações sobre os males sofrido pelo homem estrangeiro, a ocorrência do acidente, o efeito colateral do veneno, além de alguns caracteres merísticos da serpente: padrão de coloração, tamanho corporal e o formato da cabeça, características que destoam de quaisquer serpentes assinaladas para a Amazônia e até mesmo conhecidas para a ciência.

O relato sobre a ocorrência desta serpente desconhecida, aliada a possível cura de doenças neurodegenerativas pelo veneno da víbora, fez com que Dione Morel obstinadamente passasse em diferentes etapas de sua vida, fazendo tentativas de confirmar (ou refutar) o enigmático anunciado científico. Essa obstinação levou o intrépido cientista percorrer cerca de noventa e nove por centos dos mais de 5 milhões de km² da Amazônia, a qual possui a aparência — vista de cima — de um imenso lençol verde, entrecortado por grandes rios e uma infinitude de igarapés, além da alta diversidade de ambientes e de espécies da flora e da fauna, elementos que fazem desse macroecossistema um lugar incomparável e reconhecido por sua dimensão geográfica, que sobrepõe áreas de oito países da América do Sul: Brasil, Bolívia, Colômbia, Peru, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa.

Dione Morel, desde o primeiro contato com a nota sobre o caso da serpente, alimentou um desejo incoercível de encontrar a víbora para que dela pudesse extrair a peçonha e, a partir de refinamentos laboratoriais, produzir um antídoto que pudesse levar a cura de diversas enfermidades neurodegenerativas que afetam o funcionamento do sistema nervoso, debilitando progressivamente as pessoa acometidas por elas. Para Dione Morel, essa seria uma oportunidade de confirmar um suposto achado do passado e trazer para o presente um “novo” achado que revolucionária a ciência médico-farmacológica. Por isso a obstinação de encontrar o animal.  

A expedição científica: finalmente, após longos dias de preparação para o início da expedição científica, Dione Morel, acompanhado de dois experientes colaboradores: Pedro Lô (técnico de laboratório) e Zé Bento (um afamado mateiro amazônida), partiram rumo a um lugar ermo da floresta tropical, o único lugar que faltava ser explorado pelo resiliente cientista. Dione Morel tinha como convicção que caso não encontrasse a referida serpente nesta área, concluiria que o caso não passava de mais uma das muitas fábulas amazônicas.

Quanto à viagem, inicialmente a equipe fez o primeiro percurso de helicóptero até um pequeno vilarejo a margem de um rio bastante caudaloso. Depois, em um pequeno barco contratado no vilarejo, fez um longo trajeto navegando por um rio de segunda ordem, depois rompendo com certa dificuldade um pequeno tributário até alcançar uma recôndita aldeia indígena nas brenhas da maior floresta tropical do mundo.

Além de Pedro Lô e Zé Bento, recomendados pelos colegas da ciência. A partir da aldeia semi-isolada Dione Morel contratou dois indígenas de meia-idade: Mariwaba e Nhamundá, vistos na aldeia como os melhores conhecedores da região, para conduzir a equipe pelo interior da floresta até a área onde seria supostamente encontrada a serpente. Toda bagagem da expedição, incluindo barracas, lonas, cordas, redes, mosquiteiros, utensílios de cozinha e provisões, foi cuidadosamente organizada em mochilas e jamaxins, sob a responsabilidade de Zé Bento e os dois novos contratados, que além de servirem de guias para a expedição, também tinham o compromisso de ajudar no carregamento do material.

Os apetrechos de trabalhos (instrumentos laboratoriais, entre outras coisas), ficaram sobre os ombros de Pedro Lô e Dione Morel, que também conduzia itens básicos de primeiros socorros e soros antiofídicos, mantidos sempre à mão, caso necessitasse. Pedro Lô também ficou responsável pelo trabalho de fotografias, enquanto Zé Bento, além da expertise em sobrevivência na selva, ficou responsável pela preparação das refeições, o qual, apesar dos improvisos, se revelou um excelente cozinheiro.

Sobre a jornada diária da expedição, sem demostrar nenhuma presa, o grupo científico caminhava em média duas léguas de sesmaria por dia, o correspondente a seis quilômetros. Dormiam cedo e acordavam cedo antes de o dia clarear. Num certo dia, montaram acampamento embaixo de uma frondosa árvore que em cima sustentava dezenas de ninhos de formigas conhecidas como jiquitaias. Tarde da noite, tiveram que deixar o local as pressas devido ao ataque dos insetos picantes que caiam sobre as redes, causando mordeduras doloridas e irritantes.

No geral, a equipe tomava café às seis e meia da manhã e almoçavam por volta das quatro da tarde, quando paravam para o pernoite. O cardápio não variava muito. Pela manhã: café, leite condensado, cuscuz de milho ou biscoito (de água e sal) recheado com doce de goiabada. Pela tarde: arroz com carne de charque ou sardinha enlatada. Às vezes peixe fresco pescado nos igarapés ou carne de caça capturada pelos indígenas Nhamundá e Mariwaba. Durante a caminhada, os expedicionários também se nutriam de algumas frutas silvestres que encontravam, mas que só comiam após a aprovação dos indígenas.

Volta e meia a equipe se perdia no mato. Nessas horas todos paravam sob a ordem dos indígenas e voltavam alguns metros com o propósito de retomar a direção ao ponto indicado no mapa e verificado pela bússola. À certa altura de um trecho de mata mais densa, Zé Bento sentiu uma espécie de queimação pelo corpo e ali mesmo jogou a tralha no chão e surpreso ficou quando, ao tirar a camisa, viu seu corpo tomado por centenas de minúsculos carrapatos. Felizmente, não era o carrapato-estrela transmissor da febre maculosa.

Imediatamente, Mariwaba improvisou um macerado de folhas colhidas de uma planta conhecida por ele como anticarrapaticida e Zé Bento, de posse do macerado, aplicou por toda região afetada pelos carrapatos. No prazo de alguns minutos, todos os ácaros tinham sido eliminados do corpo do experiente mateiro.

Transcorridos sete dias desde o início da expedição, certa manhã, Pedro Lô acordou de mau-humor e, num excesso de irritação, atirou num bando de macacos que passava sobre as copas das árvores. Dione Morel interpretou esse descontrole emocional como resultado da “síndrome dos sete dias”. Um comportamento anômalo onde uma pessoa, ao passo de completar sete dias no campo, longe da sua zona de conforto, passa por um processo de descontrole emocional, às vezes com duração de dois ou três dias, quando a pessoa passa ao seu estado normal.

Voltando à floresta, Mariwaba e Nhamundá, além de guias da expedição, também eram experts em montar guarda à noite. Mesmo sem imposição de Dione Morel, eles passaram a fazer isso todas as noites desde o primeiro dia da jornada. Como há de ser numa empreitada na selva amazônica, muitos imprevistos e infortúnios estão presentes. Sendo ao longo da jornada os expedicionários tendo de enfrentar diversas formas de perigos, como na travessia de um rio, quando Pedro Lô quase que se afogou, não fosse Nhamundá ter puxado pelos braços. Neste dia, após esse fatídico evento, como já se passava das 16:00 horas, os expedicionários pararam para pernoitar à sombra de uma enorme sumaumeira.

Após o banquete preparado por Zé Bento, o grupo, acomodado cada um ao seu modo e seguindo a rotina de todos os pernoites, iniciava-se um ritual de conversas sobre o corrido durante o trajeto ou o que seria providente para o dia seguinte. Essas conversas muitas vezes terminavam com fatos e estórias da floresta narradas por Nhamundá ou Mariwaba. Desta vez, Mariwaba falou sobre uma criatura monstruosa que mais se parecia um homem deformado, que no universo de seu povo seria remanescente de um povo antigo extremamente violento.

Mas talvez fosse também o Mapinguari. Uma criatura selvagem da lenda amazônica. Contudo, seja lá for, Mariwaba contava que em tempos passados, alguns indígenas ao atingirem uma idade bem avançada, se transformavam numa entidade selvagem e passariam habitar o interior da floresta. Errantes e sozinhos, emitia sons penetrantes semelhantes ao grito dado pelos caçadores. Se alguém responder, a criatura vai ao encontro do desavisado, que na maioria das vezes acaba morrendo. E aqueles que conseguem sobreviver ficam ariados um bom tempo ou passam conviver com marcas no corpo para sempre, como prova das garras e dentes da criatura selvagem.

Sobre esse ser monstruoso, Mariwaba, deixando Dione Morel e seus parceiros ainda mais tenebrosos e excitantes, dizia que a criatura vivia exatamente pela aquela região, andando mata adentro em busca de um tipo de serpente venenosa com propósito de sugar sua peçonha, que seria como um tônico para sua alma. Já que para o sustento do corpo, a entidade selvagem devorava qualquer animal que cruzasse a sua frente.

Não bastasse a escuridão da noite em plena floresta amazônica, a narrativa de Mariwaba trouxe ainda mais assombro a todos da equipe, deixando, no entanto, Dione More mais convencido de que estava no caminho certo. E com isso em mente, o cientista acabou adormecendo para sonhar mais uma vez com o veneno da serpente.

*Zoólogo, Consultor Ambiental e Filósofo.