Paisagens culturais do lavrado de Roraima

Paisagens culturais do lavrado de Roraima

Sebastião Pereira do Nascimento*

Historicamente, os mais antigos habitantes do lavrado são os povos indígenas, onde os Wapixana talvez sejam os principais remanescentes desses povos, antes da chegada dos grupos Karib neste espaço geográfico, mormente os Macuxi, Taurepang, Ingaricó e Patamona, que hoje ocupam quase que totalmente essa região de lavrado, habitando áreas distintas ou conjugadas e mantendo uma forte relação com essa paisagem.

Ameaçados no passado e também no presente, os povos indígenas habitantes do lavrado passam hoje por um processo de reorganização interna, num caminhar que envolve o fortalecimento da identidade, as práticas de manejo sustentável dos recursos naturais e a inserção na paisagem cultural, a qual está fortemente arraigada ao modo de vida desses povos indígenas, baseada numa herança que eles carregam dos seus antepassados e do ambiente onde estão inseridos. 

Os primeiros contatos com esses povos nativos do vale do rio Branco ocorreram efetivamente a partir do século XVIII, quando, pressionada pela disputa de terras brasileiras com outros países europeus, a coroa portuguesa estabeleceu para a região uma política de ocupação territorial no intuito de assegurar o domínio dessas terras do extremo norte do país. Como principais estratégias de ocupação, os portugueses, utilizando os povos indígenas como instrumento de manobra, construíram alguns aldeamentos indígenas organizados por religiosos e edificaram o Forte de São Joaquim (em 1775), nas confluências dos rios Uraricoera e Itacutu. Na sequência, instalaram as primeiras fazendas de gado nos campos do rio Branco, utilizando a mão de obra escrava indígena nas atividades pastoris. Com o passar do tempo, como os indígenas não respondiam à expectativa dos portugueses, vieram os primeiros migrantes do nordeste do Brasil e de outras regiões da Amazônia e, mais tarde, os migrantes do centro-sul do país.

Assim, se tratando da paisagem cultural do lavrado, entendemos que esse mosaico étnico foi o principal responsável pela reconfiguração e ressignificação dessa paisagem regional, construída através de um processo programado a partir das práticas cotidianas desses habitantes locais (indígenas e não indígenas), onde historicamente edificaram suas vidas pautadas nas feições do lavrado, partindo de uma relação harmônica ajustada com o tempo, a qual celebra as principais características culturais desses grupos sociais.

Desse modo, podemos dizer que essas transformações que se sucederam na paisagem do lavrado ao longo do tempo, se fizeram a partir de ações humanas (também chamadas de geofatores), envolvendo elementos naturais e culturais, com forte dependência recíproca, as quais conservam elementos de tempos passados e tornaram-se um marco identitário da população local, confirmando o que o geógrafo Aziz Ab’Saber apregoava de que um povo residente em uma determinada região atribui significados materializados na paisagem ou até mesmo instigaram a remodelação dela, através de processos relacionais, numa ideia de que a paisagem cultural é sempre uma herança de um povo.

Assim, sob a luz desse entendimento e sem prolongamentos conceituais, identifico aqui alguns elementos (geofatores: funcionais ou simbólicos) que integram a paisagem cultural do lavrado de Roraima, sendo tais unidades sociopaisagísticas configuradas e/ou ressignificadas ao longo de um processo histórico-cultural que resulta da relação íntima do homem do lavrado com a natureza:

Casas indígenas e as malocas – A casa tradicional indígena no lavrado tem sua estrutura construída de madeira rústica, coberta com palhas de buriti, embarreada com barro pisado (abobe ou taipa) e piso de chão. No geral, a casa apresenta uma ou duas portas (uma na frente e outra no fundo da casa), com pouca janela, além de um amplo espaço interno sem divisão, sugerindo uma habitação familiar e coletiva. Alguns consideram que essa arquitetura tenha sido assimilada a partir das habitações dos não indígenas. Quando se olha as casas dentro de um conjunto, identifica-se uma aldeia, ou melhor, uma maloca, como é mais conhecida regionalmente, embora hoje o termo venha sendo substituído por comunidade. No âmbito desse agrupamento de casas, o antropólogo Paulo Santilli, tratando da maloca dos índios Macuxi, comenta que “o desenho da aldeia não demonstra de imediato ao observador sua morfologia social. As casas parecem distribuir-se aleatoriamente, porém, um olhar mais atento percebe que, via de regra, elas se dispõem em conjuntos que correspondem a parentelas. As parentelas formam unidades políticas cuja interação perfaz a vida social e política da aldeia”. Na atualidade, muitas aldeias seguem o padrão de vila, com casas distribuídas simetricamente ao longo de uma “rua”, aproximando-se do modelo urbano não indígena. Quanto à localização no espaço geográfico, para evitar o alagamento em época de chuva, as malocas são sempre construídas na parte mais elevada do terreno — no topo dos tesos. Tanto as casas como as malocas são geofatores funcionais que se destacam na paisagem do lavrado, antigamente construídas com artefatos naturais que, ao longo do tempo, vêm sendo substituídos por produtos da sociedade envolvente, fazendo com que a natureza artificial tenda a funcionar, ao longo de um processo, como referência às finalidades das famílias indígenas.

Sede das fazendas antigas – No contexto da paisagem cultural do lavrado, as casas das antigas fazendas são elementos funcionais, cuja arquitetura se modifica ao longo do tempo; no início correspondia a um ambiente físico (sem se importar com a estética) que atendesse apenas às necessidades dos trabalhadores. A estrutura da casa possuía o máximo de inclinação para facilitar a queda da água da chuva. A cobertura era feita com palhas de buriti, embarreada com barro pisado (abobe ou taipa) e piso de chão batido. As portas e janelas fechadas com couro de gado. Com o passar do tempo, as casas foram ganhando novas aparências, sendo a cobertura de palha trocada por cavaco (lasca de madeira em formato retangular), as paredes rebocadas com uma argamassa de areia, barro, água e esterco de gado (o esterco servia para dar consistência ao reboco). Muitas vezes as casas eram caiadas de branco, utilizando tabatinga (argila) retirada do leito dos igarapés. O piso de chão transformado em cimento “queimado” e as janelas e portas ganhavam adornos de madeira. Mais tarde, a construção rústica foi dando espaço às casas maiores e mais trabalhadas, quando as famílias de maior poder aquisitivo utilizavam cobertura de telha do barro, azulejos no piso e as paredes pintadas com cal. Além da casa principal, era comum um barracão (coberto de palha, sem paredes) próximo à casa para abrigar os vaqueiros ou viajantes — essa distribuição espacial das casas era possibilitar a convivência entre as diferentes classes sociais, o que teria tornado a experiência da colonização muito similar a outras regiões brasileiras.

O fogo do lavrado – O fogo nos campos do lavrado é um elemento funcional que, pelo advento de como se manifesta, se configura como uma paisagem cultural do lavrado. Na maior parte dos casos, o fogo é ateado no campo para renovação da “pastagem” destinada à criação extensiva de gado ou como “limpeza” das áreas de caça e pesca. Prática que se faz no período de maior escassez de chuva (entre setembro e abril), época em que se potencializa a incidência do fogo em decorrência da vegetação seca e do vento ardiloso. Diante dessa realidade vivenciada ano a ano, é possível dizer que a ação do fogo na região alimenta uma atividade histórico-cultural, onde a população do lavrado, levada pelas circunstâncias em que vive (e a contemplar o horizonte até onde a vista alcança), vê no fogo seu principal aliado na manutenção das áreas abertas roraimenses. Assim, o povo local acaba sendo o principal ativador da faísca incendiária, que muitas vezes foge da sua verdadeira intenção. Ante esse processo, ainda que o homem do lavrado não perceba a sua efetiva participação nesse acontecimento, ele mantém com o fogo um significado funcional de troca que envolve tanto os elementos naturais como culturais, que resultam na permanência dessa paisagem aberta. No contexto ecológico, é visível a enorme capacidade de resiliência dessa paisagem que, a depender de uma menor intensidade ou menor frequência do fogo, logo se recompõe francamente. No entanto, apesar de o fogo sempre ser visto como uma espécie de vilão do lavrado, “bem ou mal”, ele acaba fazendo parte de um processo dinâmico — de crescimento, morte e sucessão —, quando revigora a vida dessa paisagem regional.

As roças tradicionais – As roças tradicionais são elementos funcionais incorporados na paisagem cultural do lavrado, comumente construídas nas encostas das serras, nas matas de galerias ou nas ilhas de mata — essas áreas são escolhidas por apresentar o solo mais fértil. Essas roças, assim como o fogo (mencionado acima), gradativamente exercem um papel na consolidação das áreas abertas do lavrado. Uma vez que o povo que habita esta região constrói suas pequenas roças nas bordas desses ambientes florestados, muitas vezes evitando que a mata avance sobre as áreas francamente abertas. Por outro lado, com a progressão do tempo, essas bordas de mata vão sendo corroídas muito lentamente, dando oportunidade para que todos os elementos da natureza se ajustem à medida que se transforma a paisagem. Assim, com a construção dessas pequenas roças, tem-se uma paisagem “programada”, a partir da apropriação e da transformação do espaço natural, através de uma relação harmônica entre o homem e a natureza.

As roças de caiçara – A caiçara é um sistema de produção agrícola rudimentar utilizado pelo povo do lavrado, que agrega a agricultura de subsistência à criação de gado. Por via de regra, é comum ver nas circunvizinhanças das habitações indígenas ou nas sedes das antigas fazendas plantações de bananeira, mandioca, macaxeira, batata, etc., geralmente próximas aos currais, como forma de superar a baixa fertilidade do solo do lavrado. O processo se dá em manter os animais presos durante a noite na caiçara (curral rústico), fazendo com que os animais concentrem seus excretos (fezes e urina) na área, onde serão naturalmente incorporadas ao solo — as fezes se carregam de fertilizar o solo e a urina, por ter nível bom de ureia, atua na diminuição da acidez. Assim, com esses dejetos bem distribuídos na área de plantio, não há necessidade de utilizar nenhum insumo químico. Essa prática tradicional de produção agrícola consiste num importante significado cultural a partir de uma atividade de subsistência que se manifesta em perfeita harmonia com a paisagem do lavrado roraimense.

Os cavalos lavradeiros – Os cavalos do lavrado chegaram ao vale do rio Branco possivelmente por volta do século XVIII, trazidos pelos portugueses, sendo primeiramente utilizados para deslocamento de tropas militares a serviço da coroa portuguesa. Mais tarde, com a chegada dos primeiros rebanhos bovinos, os cavalos passaram a ser utilizados no trato do gado no campo (atividade conhecida localmente como “campeada”). Com a expansão das fazendas de gado, os cavalos também foram se expandindo ao ponto de terem uma vida livre no lavrado, onde costumam andar em bandos (lotes) de um macho (denominado de “pastor”) e de oito a dez fêmeas. Sobre a vida livre desses cavalos, o pesquisador da Embrapa/RR, Ramayana Braga, explica que, do ponto de vista econômico, os fazendeiros não tinham o interesse de manejar adequadamente os cavalos como faziam com o gado bovino, em função da criação superextensiva, apenas “amansavam” os animais (pegados a laço) que utilizavam no dia-a-dia das fazendas — os chamados cavalos de sela. Bem adaptados às condições do lavrado, esses equinos passaram a ser designados de “cavalos lavradeiros”, vivendo totalmente em liberdade, onde muitos deles nascem, crescem e morrem sem ter nunca contato direto com o homem. Hoje é comum ainda ver remanescentes de lavradeiros nas paisagens do lavrado, mormente na bacia do igarapé Maruai, região central da TI São Marcos. Por outro lado, o risco em que esses animais se encontram atualmente se deve ao imediatismo dos produtores que, ao longo do tempo, vêm substituindo o lavradeiro por outras raças consideradas mais promissoras. Sobre a continuidade desses cavalos no lavrado, apesar de viverem no interior da TI, infelizmente não é suficiente para proteger esses animais. O seu desaparecimento, além da perda de uma “raça” de cavalos adaptada às condições extremas da região, representa também a perda de um elemento da paisagem cultural do lavrado.

O gado bovino do lavrado – Como forma de garantir a posse definitiva da coroa portuguesa sobre essa região do vale do rio Branco e considerando o potencial natural dos campos gerais da região, os portugueses optaram por introduzir os primeiros rebanhos de gado bovino nos campos gerais do lavrado, a partir da segunda metade do século XVIII. Assim, deu-se o início da pecuária roraimense. Paulatinamente, ao longo do tempo, inúmeras fazendas de gado foram sendo disseminadas pelas áreas abertas locais, consolidando definitivamente a criação extensiva de gado nessa paisagem setentrional. Portanto, essa criação bovina, iniciada pelos portugueses e praticada há mais de dois séculos pelo povo do lavrado, consiste numa trajetória de suma importância política e econômica para a região, no mesmo instante em que — como um componente emblemático na paisagem do lavrado — tem sido um geofator causante de recorrentes conflitos sociais. No contexto paisagístico, a criação extensiva de gado passou a ser um elemento indissociável, tanto do espaço geográfico quanto do contexto histórico-cultural do povo roraimense, transpassando o tempo e se manifestando de forma marcante na paisagem cultural do lavrado.

A expressão “macuxi” – As tentativas de formular a trajetória percorrida pelo povo Macuxi até o seu estabelecimento definitivo na região do lavrado de Roraima remontam a um processo migratório que vem das ilhas caribenhas (Im Thurn, 1883 apud CIDR, 1987. p. 46), passando pela bacia do rio Orinoco, em etapas progressivas, até se tornar definitivamente um grupo étnico intrínseco dos campos do rio Branco. Em tempos atuais, a expressão “macuxi” referenda bem esse contexto histórico e o protagonismo do povo Macuxi na terra de Macunaima, onde a denominação “macuxi” passou a ser um bem cultural que marca expressivamente as relações que se interpõem entre esse povo ameríndio e a natureza circundante. Isso se faz tão imanente que qualquer pessoa nascida ou radicada em Roraima, independente da origem étnica, levada pela hegemonia do povo Macuxi, passou a ser designada também de “macuxi”. Essa bela expressão caiu nas graças do povo de “fora” que costuma chamar calorosamente o roraimense dessa forma, embora alguns indivíduos da população local, por preconceito aos povos indígenas, façam resistência. Mas é recorrente a expressão “macuxi” estampada nas fachadas dos comércios, nas propagandas ou nos produtos que levam esse “signo” como algo genuinamente roraimense — essa narrativa é tão expressiva que até se denominou a cidade de Boa Vista, de “macuxilândia”. Portanto, a designação “macuxi” é uma representação simbólica que passou a ser a identitária do povo local, incorporada como uma paisagem cultural, por influência do povo Macuxi, que, segundo Paulo Santilli, se consolida como a unidade étnica mais abrangente da região do lavrado.

Os nomes dos acidentes geográficos do lavrado – As denominações de unidades geográficas que compõem o lavrado, a exemplo dos rios: Branco, Tacutu, Parimé, entre outros da região; cachoeiras: do Bem-Quere, do Tamanduá, do Orinduque, entre outras; serras: do Tabaco, do Banco, da Moça, do Tepequém, dentre outras, são designações que permeiam pelo cotidiano do povo do lavrado, como signos da cultura simbólica da região. No geral, essas denominações se estabelecem entre um determinado povo quando ele se apropria do elemento natural e, num lance de olhar, o denomina com um sentimento de pertencimento, como podemos captar neste fragmento da história de Macunaimanarrada pelo indígena Macuxi Jorge Tobias: “[…] a mãe deu à luz lá no pé da serra do Mararí e o chamou de Macunaima. Lá ele se criou. Com dez anos, ele e a mãe se mudaram para pedra pintada, na beira do rio Parimé. Lá ele cresceu e fez uma casa, um malocão. Ali ele se casou e teve dois filhos: Anike e Insikiran. Durante muito tempo, Macunaima andou pelo lavrado e, se apropriando dos elementos da natureza, dava nome aos rios: Cotingo, Maú, Uraricoera, Surumu… às cachoeiras: do Orinduque, do Jirau, do Massagal, do Caboré… às serras: do Tarame, do Mel, do Pacaraima, do Passarão…”

Diante do exposto, a grosso modo, convencionou-se chamar de paisagem cultural aquele elemento que, por sua própria natureza, alimente alguma relação recíproca — em forma de benefícios — entre o espaço geográfico onde o elemento da ação está integrado e o corpo social envolvente. Diferente, por exemplo, da paisagem homogênea programada pela agricultura de grande escala, que por sua própria característica de produção acaba quebrando o fluxo do cenário natural onde está inserido ou até mesmo perturbando a vida social do povo residente que, através dos tempos, luta para manter viva seus valores culturais e seu espaço geográfico íntegro.

Assim, os ganhos decorrentes da utilização e ocupação dos espaços sociogeográficos ou da transformação da natureza pelas atividades humanas, a partir das paisagens culturais do lavrado, ainda que em constantes transformações, aliadas aos fatores ecológicos da região, conferem ao lavrado uma identidade própria, diferenciada de qualquer outro sistema de paisagens abertas. Contudo, é importante ampliar os níveis de informações a respeito dessas relações do homem com os elementos naturais do lavrado, a fim de entender os efeitos das manifestações antrópicas sobre esse ecossistema roraimense. Localmente, é sabido que algumas práticas e manifestações para além do contexto sociocultural acarretam efeitos deletérios, provocando até mesmo a perda de alguns componentes da natureza, além de levar aqueles que possuem pouco juízo a fazer interpretações equivocadas sobre a história natural dessas áreas abertas do extremo norte da Amazônia.

*Consultor ambiental – autor de diversos artigos científicos; coautor do livro “Vertebrados Terrestres de Roraima”; associado à SociedadeBrasileira de Zoologia (SBZ), matrícula nº 2260; membro do corpo editorial da revista Biologia Geral e Experimental (www.biologiageraleexperimental.bio.br).