Histayllon Santos*

            As estrelas se apagam, deixando para trás um último brilho tímido no retrato do céu. A lua vai sumindo da visão de quem a observa. O que era escuridão na noite vai sendo modificado pelas cores do amanhecer. As garimpeiras já não estão mais nas esquinas. Há um indígena fazendo beiju em alguma maloca das aldeias da minha terra. Todos os interiores de Roraima vão acordando ao seu modo. Em Boa Vista, com a ausência do canto do galo, o trânsito vai ganhando sua pequena agitação. Mas, de forma singela, os passarinhos, pousados no concreto, cantam uma melodia para anunciar a chegada da manhã. Dentro de mim, a prosa grita. A vida me chama para existir. Acordei animado com a vida, fiz um café amargo e sacrifiquei os ovos na frigideira para matar a existência da minha fome. Com a poesia da casa arrumada pela manhã e aquela sensação de bem-estar, sem precisar fazer fotossíntese social, dei-me o luxo de sentar, pegar minha sacolinha, tirar a agulha do crochê e a linha para continuar a construção do meu tapete rosa.

            A agulha vai, pega a linha, leva, passa, puxa e faz o nozinho. Entre o cruzamento do passado e o presente, com as mãos de um roraimense, o tapete vai se transformando na projeção de um futuro incerto, uma quase verdade absoluta minha. E, nesse momento, os pensamentos estão domesticados em uma atenção única: não errar a contagem dos pontos. Pois sobre o tapete, tenho o poder da criação. Cabe a mim a mágica da transformação. Ele não sairá do barro nem da costela do homem, mas será tecido pela dedicação das minhas mãos. Quando, de repente, um desejo me nasce. Dentro de mim, soa um alerta: eu tenho um desejo. Desejo ser algo. Deixo o tapete de lado e escuto esse chamado: quero fazer um feijão cozido.

            Assim como os amores modernos e líquidos, romantizo um planejamento ansioso. Já me vejo na cozinha, fazendo comida para mim, para meus vizinhos, para as pessoas do meu bairro, para as pessoas da minha cidade. Vejo-me sendo o cozinheiro que acabará com a fome do Brasil, do planeta — e, se existir fome de feijão em outras galáxias, essa também será saciada com o meu feijão. Levanto-me, visto-me e, impulsionado pelo desejo, vou ao mercado comprar o que preciso para alimentar minha vontade. Ao chegar, percebo que nem todos podem ser felizes naquele espaço. As classes sociais se revelam nas prateleiras: os feijões não são iguais, e os carrinhos, assim como os bolsos, não estão igualmente cheios.

            Baseado na minha falta de experiência, pego o feijão mediano no preço, pois o outro poderia tirar minha liberdade de comprar coisas no futuro. O feijão escolhido é o mais confortável para aquilo que recebo. Além do feijão, tomei a impulsiva decisão de comprar as demais coisas: as verduras, a calabresa e os temperos. Cheguei ao caixa com aquela preocupação de valor. A moça sorridente passou os produtos, eu paguei e levei o que queria. Eu levei, mas, socialmente, nem todas as famílias estão com a mesma condição que eu, o social também é desigual. No meio daqueles preços assustadores, lembrei-me de que precisava de uma panela de pressão. No supermercado, havia uma, mas ela não me parecia segura.

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            Andei até uma loja maior. Lá, encontrei uma panela de pressão e paguei com um rim, parcelado em 5 vezes. Parecia que estava comprando um apartamento no  Varandas do Rio Branco. O desejo dentro de mim estava animado. Eu tinha uma febre de ansiedade em relação ao futuro. Corri para casa, era um homem, um desejo, um pacote de feijão e uma panela de pressão. Chegando em casa, naquela ânsia de concretizar meu desejo, lancei-me rapidamente ao YouTube para uma capacitação de emergência. Arrumei tudo e, de repente, eu vi a panela em romance com o fogo do fogão. Em questão de minutos, ela começou a fazer “Ssssss… ssssss… Ssssss… ssssss”! Aquilo era um aviso de que ela estava funcionando. Era a certeza de que eu iria alimentar o mundo, eu tinha um sentimento paterno com o mundo, em que a fome chora para ser silenciada. Quando os 20 minutos da receita se passaram, desliguei o fogo, esperei a panela sinalizar o seu descanso, então a abri e fui temperar o feijão. Coloquei isso, aquilo, mais um pouco disso e mais aquilo, e a magia do sabor estava prestes a acontecer. Pequenas borbulhas indicavam a fixação do sabor. Desliguei o fogo e, naquele instante, eu tinha a concretização do meu desejo: o meu feijão estava pronto, feito e pronto para ser saboreado. Eu estava pronto para a grande ceia.

            Peguei uma colher, busquei um pouco de feijão na panela e coloquei na boca. Em questão de instantes, quebrei a ilusão das minhas perspectivas e tive consciência do sabor horrível que me apareceu no paladar. Eu tinha criado a coisa mais horrível do mundo. Deus, eu errei? Pequei em criar perspectivas futuras? Por que deixaste acontecer isso comigo? Será que joguei pedra na cruz? Um sentimento de revolta e culpa me petrificou. Fui traído pelo feijão, fui vítima de uma conspiração celestial. Logo eu, o que tinha de errado em mim para chegar àquela coisa monstruosa? O meu desejo virou uma imensa frustração, a cozinha estava impregnada com o cheiro de derrota. Eu queria alimentar o mundo, mas acabei criando uma frustração sentimental. Tirei aquela coisa monstruosa da panela, coloquei-a em um saco e enterrei no fundo do quintal, com receio de matar algum animal inocente. Agora, o que me resta é culpar a Deus, pois ele não tinha o direito de fazer isso comigo, também culpar todos os feijões do mundo. Eu era inocente diante do meu desejo.

            Talvez eu entre na academia, corte o cabelo e comece a postar nos meus status que aprendi a me valorizar. Pois quem perdeu foi o feijão, que não quis ser perfeito ao meu lado. Ele vai chorar para ser cozinhado por mim. Se eu fizesse isso, estaria seguindo a voz mundana dos vitimizados nas relações. Sim, era um relacionamento íntimo, meu e do meu desejo, com o objeto de desejo em forma de feijão, e houve apenas a frustração da não realização. Isso aconteceu pela minha falta de preparo ou descuido na hora de preparar o feijão — uma ótima oportunidade para rever a minha trajetória na arte de cozinhar. As pequenas frustrações são necessárias para o autodesenvolvimento. Seja com o desejo, seja com amores, amizades, familiares ou no trabalho. O mundo real — esse que está fora das telas digitais — é um solo fértil de frustrações. A ressignificação delas é uma capacidade particular de cada um. O feijão foi uma dádiva de me encontrar como ser errante e com liberdade de refazer essa narrativa de frustração, pois ainda me resta potência da prosa da vida.

            Senhoras e senhores, a vida é feita de preparação de feijões. Estamos realmente preparados para o resultado desse processo? Como anda a sua capacidade de lidar com suas frustrações? Quando foi a última vez que você se perdoou por seus erros? A quem culparemos na hora da frustração? Ssssss… ssssss… Ssssss… ssssss, bora prepara o nosso feijão?

*Aspirante a escritor _ instagram_ @histayllon_santos

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