João Paulo M. Araujo
Professor de filosofia no IFRR
Membro do grupo de pesquisa Escola Amazônica de Filosofia
Poor Things (2023) traduzido no Brasil como Pobres Criaturas é uma produção cinematográfica que carrega um caleidoscópio de diversas leituras e interpretações. Nele figuram temas como liberdade sexual, feminismo, cinismo, utopia, progresso científico, dilemas morais, autodescoberta, etc. Dirigido por Yorgos Lanthimos, o filme tem como pano de fundo uma Londres vitoriana embebida de uma estética que carrega alguns elementos sci-fiction steampunk embora, bem menos caótica e poluída para alguns dos padrões do gênero. Além de Londres outras cidades figuram o cenário da trama como Lisboa (uma cidade opulenta), Alexandria (o desvelamento da desigualdade social) e Paris (o realismo e a utopia). Cada uma dessas cidades pode ser interpretada como a representação de etapas na busca pela autodescoberta da personagem ao longo da trama.
Falando em personagem, o filme gira em torno de Bella Baxter (Emma Stone), que resumidamente poderíamos caracterizar como uma criança no corpo de um adulto. Mas o que significa isso? Na Londres vitoriana a bizarra figura do Dr. Godwin Baxter (Willem Dafoe) ao estilo de Frankenstein, dá vida a uma bela criatura, mas, diferente da fábula de Shelley, o corpo da criatura já está totalmente moldado, o que não está, como veremos é a sua personalidade que nos estágios iniciais, ao menos do ponto de vista dos conteúdos representacionais da mente, se assemelha a imagem da tábula rasa dos empiristas. A razão disso é porque Bella é o resultado de um experimento de transplante de cérebro.
Isso pode inicialmente nos causar certa confusão. Imagine que um corpo que teve morte cerebral recebera um cérebro novo; supondo ser esse o caso, o que acontece na prática? Poderíamos nos perguntar em tom de brincadeira: é um cérebro que ganha um corpo ou um corpo que ganha um cérebro? Do ponto de vista da identidade pessoal, essa questão é fácil de responder, mas apenas se admitimos que o cérebro é o locus de nossa cognição, nossas memórias, e por conseguinte, da noção de um self. Com isso não pretendo cair no reducionismo de que somos o nosso cérebro, mas apenas chamar atenção para o fato massivamente empírico de que processos cognitivos e estados mentais são instanciados em um cérebro.
Mas o caso de Bella é ainda mais curioso. O seu cérebro não é um cérebro de um adulto compatível com sua idade. O cérebro de Bella é o cérebro de um recém-nascido que no filme ganha um contorno dramático devido ao fato deste cérebro ter sido gerado no ventre do corpo que agora habita. Em outras palavras, o corpo de bela é o corpo de sua mãe que estava grávida e cometeu suicídio ao saltar da ponte de Londres. O bebê que estava vivo, teve o cérebro prontamente retirado e transplantado para o corpo da mãe. Mas por que isso? Numa breve e insatisfatória resposta: ciência! Essa é a justificativa do Dr. Godwin Baxter. Em sua residência onde também é o seu laboratório, é possível ver como fruto de seus experimentos uma série de criaturas quiméricas e bizarras como uma cabeça de ganso no corpo de um cachorro ou até mesmo uma cabeça de porco no corpo de uma galinha. Trata-se de uma série de experimentos que visam amadurecer sua pesquisa cujo o ápice seria o transplante de cérebro humano.
Do ponto de vista da filosofia da mente, a tese endossada no filme acerca do problema da relação mente-cérebro seria uma tese materialista, e como estamos falando de século XIX e sua herança iluminista, uma tese ao estilo de La Mettrie (1709-1751) na qual toda nossa vida anímica seria explicada em termos de um complexo mecanicismo orgânico e material. Estados mentais seriam apenas uma forma complexa e sofisticada da arquitetura material de nosso cérebro. Como o cérebro de Bella é um cérebro de um recém-nascido, o filme retrata todo o desenvolvimento cognitivo da personagem, desde sua motricidade até suas formas de raciocínio que no decorrer da trama ao entrar em contato com muitas visões de mundo e leituras filosóficas (Emerson, Goethe, ideologias socialistas) termina construindo um modo sólido e único de ser e se expressar no mundo.
A questão que quero agora abordar é: e se o cérebro transplantado não fosse o de um recém-nascido? Vamos imaginar que o cérebro agora é o de um adulto já em plena maturação com todos os repertórios que uma autêntica biografia humana carrega. Como se comportaria esse cérebro? Duas respostas são possíveis para essa peça de imaginação:
1. Se somos o nosso cérebro preservaríamos toda a nossa identidade pessoal com o transplante para um novo corpo, algo parecido com o cérebro que vive numa cuba (experimento mental de Hilary Putnam), com a diferença que a realidade não está sendo simulada por um programa de computador, e a cuba aqui não é um vidro artificial com nutrientes para manter o cérebro vivo, mas sim, a própria caixa craniana na qual se encontra o cérebro. Essa identidade pessoal preservaria, ao menos inicialmente, a imagem de seu corpo anterior ao se olhar no espelho até que, se isso for possível, o cérebro atualizasse sua imagem corporal devido ao novo corpo.
2. Apesar do cérebro ser o locus de nossa identidade pessoal, esta não poderia ser reduzia ao cérebro. Assim, durante o processo de transplante toda a informação poderia (por alguma razão) ser apagada como numa espécie de formatação de um disco rígido de computador. Isso porque não daria para garantir que a mesma consciência emergiria dos processos cerebrais como antes. Esse cérebro ao ser transplantado para um novo corpo seria o equivalente a uma folha em branco pronto a começar tudo do zero.
A título de conclusão, para além da ficção, estamos longe de conseguir realizar um transplante de cérebro. Mesmo com todos os resultados que alcançamos com os modelos explicativos neurociência ainda assim, é um empreendimento que está além dos limites da ciência. Portanto, até então, sua realização só é possível no cenário da ficção e da filosofia especulativa. Entretanto, vale ressaltar que muitas conquistas da ciência começaram como um bom e belo trabalho de imaginação que, em alguns casos, foi impulsionada por uma mera ficção.