OPINIÃO

Putnam e o externalismo semântico

João Paulo M. Araujo
Professor de filosofia do IFRR
Membro da Escola Amazônica de Filosofia

É comum afirmarmos que o caracteriza uma mente são os seus estados mentais. Assim, alguns dos nossos estados mentais são também atitudes proposicionais. Atitudes proposicionais se traduzem em crenças, desejos, medos, esperanças, etc. Alguém pode acreditar que o céu é azul, desejar ou esperar que o céu seja azul dentre tantas outras proposições. Dessa forma, proposições que julgamos ser relevantes exibem aquilo que os filósofos chamam de conteúdo mental. Conteúdos mentais, por sua vez, expressam conceitos ou até mesmo noções como é o caso do conceito de ser azul. Mas como formamos ou fixamos significativamente essas noções conceituais? Uma resposta pode ser esboçada a partir do externalismo semântico de Hilary Putnam.

Numa primeira análise, podemos evocar os objetos do nosso entorno físico. Os elementos desse ambiente podem influenciar causalmente que tipo de proposições acreditamos, desejamos e assim por diante. Olhar para o azul do céu de Roraima, por exemplo, faz com que alguém forme crenças sobre ele. Todavia, podemos nos perguntar em que medida esses conteúdos mentais e semânticos que formamos dependem exclusivamente do ambiente ao nosso redor, isto é, se essas características do nosso entorno físico fazem parte da natureza de nossos conteúdos mentais. Segundo o internalismo (uma visão contrária ao externalismo), a resposta é não. Perspectivas internalistas, para aludir à Putnam, endossam a tese de que os significados e conteúdos mentais estão dentro de nossas cabeças. Logo, o internalismo encerra a ideia de que poderíamos ter os mesmos estados mentais mesmo que o nosso entorno físico fosse radicalmente diferente, em outras palavras, mesmo que estivéssemos sendo enganados por alguma ilusão. Entretanto, autores como Putnam e Tyler Burge combatem veementemente essa ideia e tentarei mostrar como, usando o exemplo das “Terras Gêmeas”, uma conhecida experiência de pensamento de Putnam presente em The Meaning of “Meaning” (1975).

Em seu experimento mental, Putnam (1975) pede para imaginarmos uma cópia ou duplicata de nosso planeta terra que ele chamou de terra gêmea. Nessa terra gêmea podemos observar que do ponto de vista fenomenal, ou seja, o modo como subjetivamente percebemos suas características físicas, o planeta gêmeo é idêntico e, portanto, indiscernível do nosso planeta terra. Todavia, há uma diferença fundamental, a saber, o líquido (“água” na língua dos habitantes da terra gêmea) que compõe os oceanos, rios e que também serve para matar a sede não é, como em nosso planeta, essencialmente descrito como H2O. Este líquido tem uma composição química completamente diferente da nossa; suas propriedades químicas essenciais são descritas como XYZ, elementos que não conhecemos e tampouco existe em nosso planeta.

Então, o ponto é o seguinte: se um habitante da terra gêmea pensa ou fala a palavra ‘água’, ele está significando a mesma coisa que nós significamos em nosso planeta quando pensamos ou falamos a palavra ‘água’? Em outras palavras, o que acredito ser água (H2O) em meu planeta é a mesma coisa que o habitante da terra gêmea acreditar ser água (XYZ)? O argumento de Putnam é constituído a partir da afirmação de que o líquido na terra gêmea não é água, mesmo levando em conta todas as semelhanças perceptuais e linguísticas com a nossa água/H2O.

É a partir disso que temos o famoso slogan de Putnam de que os significados não estão na cabeça. A água nos dois planetas é uma espécie natural (natural kind), isto é, algo que encontramos na natureza, sua realidade é ontologicamente objetiva, independe do que acreditamos ou deixamos de acreditar sobre ela. Por sua vez, isso significa afirmar que a natureza fundamental da água, seja em nosso planeta ou na terra gêmea, não é determinada pelas características fenomenológicas de nossa percepção comum, mas sim, pelas características subjacentes mais elementares como, por exemplo, a composição química do que estamos chamando de água nas terras gêmeas.

Vamos supor que eu tenha a crença de que a água é uma bebida imprescindível para minha sobrevivência. Agora vamos supor também que existe na terra gêmea um João gêmeo, uma duplicata idêntica em muitos aspectos. O João da terra gêmea e eu não sabemos que o que chamamos de ‘água’ é em sua forma mais básica XYZ e H2O. Nossos estados qualitativos de consciência são indistinguíveis, bem como nossas disposições comportamentais ao reagir para questões como dores, sentimentos, sensações, etc. Todavia, há uma pequena distinção, no corpo do João da terra gêmea contém água cuja a fórmula é XYZ, enquanto que no meu corpo contém água cuja a fórmula é H2O. É possível afirmar que somos indistinguíveis um do outro, mas apenas se considerarmos que essas características são descritas de forma que não façam referência aos objetos do mundo externo (no caso aqui, a água) que elas estão representando.

Seguindo o raciocínio de Putnam (1975), há uma diferença entre os meus estados mentais e os estados mentais do João gêmeo quando ocorre a representação de ‘água’. Mutatis mutandis, essa mesma ideia é endossada por Burge em Individualism and the Mental (1979) e em outro texto do ano seguinte Other Bodies (1980). Aquilo que Putnam chama de externalismo, Burge chama de anti-individualismo, fazendo referência à postura internalista que é o objeto de crítica em questão. Como já vimos, para o internalismo/individualismo não pode haver distinção entre os conteúdos mentais ao pensar a palavra ‘água’ em cada planeta. Em contrapartida, para Putnam e Burge, em termos causais, a diferença é notória uma vez que se trata, do ponto de vista da identidade, de objetos distintos que derivam de diferenças fundamentais em seus ambientes físicos. Embora não seja meu objetivo aqui, Burge (1979) também acentua que nossos conteúdos mentais podem depender das características do ambiente social e não apenas físico.

A visão de Putnam posteriormente aprimorada por Burge, tem muitos adeptos na atualidade. Dentro desse debate, o externalismo continua figurando como uma das posturas filosóficas mais atraentes dos últimos 20 anos. Entretanto, como toda postura filosófica, essa também não está isenta de críticas. Autores como Crane (1991) Cummins (1991) e Chomsky (1995) são críticos ferazes da ideia segundo a qual os significados não estão na cabeça e que, portanto, tudo quanto pode ser determinado acerca de nossos conteúdos mentais está fora e não, dentro. De toda forma, o externalismo para além de discussões em torno do significado e dos conteúdos mentais, pode ter implicações interessantes para outras questões filosóficas como causação mental, problema mente-corpo, autoconhecimento e tantos outros puzzles que envolvem filosofia mente, epistemologia e metafísica. Portanto, no intuito de concluirmos, para um externalista ou anti-individualista, aquilo que é interno (nossos conteúdos mentais) é apenas aquilo que é externo, ou seja, que foi internalizado. Com todas as ressalvas possíveis, essa ideia se assemelha ao pensamento hegeliano de que o interior é o exterior interiorizado.