OPINIÃO

Se Deus vier ao Brasil, que venha armado

Sebastião Pereira do Nascimento*

Atualmente, é inegável que vivemos uma crise de violência global em toda sua plenitude, a qual tem envolvido grande parte da sociedade humana. No Brasil, a violência desponta na mesma intensidade, gerando desconforto à sociedade brasileira que vivencia, de forma irresoluta, uma situação de violência que, em muitas situações, chega próximo a um cenário de guerra.

Como violência, entendemos tudo aquilo que vem a partir de ameaças ou fatos que possam levar prejuízo físico, emocional ou moral à pessoa. Contudo, embora pareça que não, a violência não é um fenômeno novo entre a humanidade. Falando de Brasil, ela sempre esteve presente em nosso cotidiano desde os tempos de colonização.Isso porque, quando os portugueses desembarcaram em terras brasileiras, se apropriaram das terras que pertenciam aos indígenas e impuseram violentamente a sua cultura europeia.Essa violência social tentava anular de qualquer maneira a cultura dos povos originários.Com isso, esse povo foi excluído socialmente, perdendo o acesso às suas terras e à sua cultura, sendo um dos fatores da violência que vemos nos dias de hoje. Fatores intrínsecos de um país que concentra a riqueza e o poder nas mãos de políticos inescrupulosos e etcéteras em detrimento da miséria do povo.

Para muitos, essas anomalias à deriva no Brasil, como diz o teólogo Leonardo Boff, trouxeram à luz a intolerância na sociedade brasileira. A qual é parte daquilo que o antropólogo Sérgio Buarque de Holanda chama de povo “cordial”, onde a violência latente vem do interior do sujeito, disfarçada de “hospitalidade” e “afeto”. Essa predisposição para a violência é decorrente dessa herança histórica, onde a sociedade brasileira teria desenvolvido uma propensão à informalidade e à intransigência. O que se deve a isso é o fato de a mesma ter sido concebida de forma coercitiva e unilateral, não havendo diálogo entre os governantes e os governados e entre os patrões e os empregados. Isso tornou a sociedade brasileira motivada excessivamente pela discriminação, pelo preconceito e pela intolerância, o que a qualifica como uma entidade cordial-passional.

Também, como especulam outros autores, pode-se dizer que esse legado de violência à brasileira deriva do arquétipo da “casa grande”, introjetado historicamente em todas as estratificações sociais, sendo os grupos humanos estigmatizados como “minoria social” (pobres, negros, indígenas, homoafetivos, refugiados, etc), os mais hostilizados e vilipendiados, mesmo entre agentes públicos que revelam diversas formas de violências de modo intolerável.

Bem comparando, essas condutas aviltantes levam a recordar o tempo dos “coronéis de barranco”. Figuras abjetas de grande poder econômico e político enraizadas pelo interior do Brasil, quando no exercício de mando usurpavam o sistema público, delegavam funções, ditavam regras, coagiam as pessoas a votarem em seus candidatos e mandavam eliminar aqueles que ousavam atrapalhar seus planos. O “coronel de barranco” se sustentava em uma teia de laços que envolvia a família, os amigos, a posse de latifúndios e o uso das estruturas tradicionais para se perpetuar no poder. Com o tempo, ao passo que o poder da sociedade brasileira sai do campo e vai para a cidade, o “coronel de barranco” se reinventa como um sujeito citadino, passando a dar as cartas a partir de um poder sustentado por um aglomerado de “coronéis”, ainda que seus interesses sejam os mesmos: primeiro ele, depois os seus e ao povo, nada!

Em suma, esse poder autoritário e violento aquece uma doutrina ultrapopulista de extrema-direita que vem se irradiando no Brasil, onde há sempre um verdugo que delega poder a outros, ampliando o raio de violência social e física: a primeira, é quando eles exaltam as diferenças sociais ou se impõem à diversidade social, práticas ofensivas que afetam sobremodo a dignidade humana. Não satisfeitos, passam a destruir o país, as instituições democráticas, pervertem a ética e a moral e dissolvem a harmonia da sociedade brasileira. A segunda é quando eles passam à prática a violência física, agravo que vem crescendo no Brasil, potencializado por um governo do passado recente que deteriorou a segurança pública do país e cuidou de armar a população. Uma coisa perigosa, pois diz a lógica que quanto mais armas circulando na sociedade — nas mãos de pessoas ultrajantes — necessariamente aumenta o índice de violência letal. Na verdade, quando um dito cidadão de “bem” resolve se armar, no fim das contas ele acaba armando o bandido e, de uma hora para outra, ele vira criminoso também. Pois, ele é sempre instigado a usar a arma contra qualquer pessoa que o contrarie. E por se achar “autorizado” age com bruteza, até mesmo contra seus familiares, não raras vezes comete o feminicídio.

Outro ponto de ebulição no país, vem da escalada de violência durante as eleições, a qual além de ressuscitar coisas do tempo dos “coronéis de barranco”, traz acontecimentos novos sem precedentes, por exemplo, o ataque violento aos prédios dos três poderes em Brasília, em 08 de janeiro; os atos de pugilismos entre “gladiadores tupiniquins” dentro do Congresso Nacional, algo que lembra um episódio macabro, há 60 anos, praticado pelo malfeitor alagoano, Arnon de Mello, quando em plena tribuna do Senado puxou uma arma e disparou três vezes, matando — por erro de alvo — o senador José Kairala, do Acre; a infiltração do crime organizado nas eleições, sob a égide de modernos “coronéis de barranco”. Algo que a presidenta do TSE, ministra Carmem Lúcia, chama de “atrevimento criminoso”; o revolto ambiente político sustido pelas redes sociais, o qual a mesma ministra já classificou de “algoritmo do ódio”; as pancadarias e contendas que vêm acontecendo nesta campanha eleitoral, onde muitos candidatos revelam seu lado sórdido e violento, a fim de anular seus oponentes, quando não com cadeiradas ou assassinados. Esta última, com notórios fatos pelo Brasil afora, inclusive aqui em Roraima.

Segundo dados do Observatório da Violência Política e Eleitoral (da Unirio) divulgados pelas agências de notícias, revelam um aumento nos casos de violência política e eleitoral no primeiro turno das eleições deste ano. Foram registrados mais de 455 casos de violência, entre ofensas, ameaças, atentados e homicídios. Um número colossal, comparando com os 63 casos registrados no mesmo período do pleito municipal de 2020. Segundo ainda o Observatório, as regiões do Brasil que mais abrigam casos de violência política e eleitoral foram, por ordem decrescente: Sudeste, Nordeste, Norte, Centro-Oeste e Sul. Infelizmente, esses casos podem aumentar, uma vez que estamos no início do segundo turno das eleições municipais, o que costuma ser mais conturbado e acirrado, tanto por parte dos candidatos quanto de seus apoiadores.

E mais triste ainda é a violência política de gênero, a qual passou a ser tipificada como crime a partir da Lei nº 14.192/2021, que estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher durante as eleições e no exercício de direitos políticos e de funções públicas. No cotidiano, as mulheres na política já passam a sofrer violência quando concorrem à eleição e depois durante o mandato. As estatísticas mostram que, a partir de 2018, houve um aumento crescente de ataques contra a mulher na política, envolvendo comportamento no sentido de humilhar, constranger, ameaçar ou prejudicar uma candidata ou mandatária em razão de sua condição feminina. Nesta atual eleição, os dados são alarmantes, o que explica dizer o quanto a estrutura conservadora da nossa sociedade é patriarcal e misógina. Diante desse universo machista, a incompreensão social e biológica sobre a mulher suscita formas distintas de violência de gênero, que não se limitam apenas à questão política, mas também aos atos odiosos de violência moral, assédio sexual, emocional, psicológico, patrimonial, financeiro, induzi-la a tomar decisões contrárias à sua vontade, chegando às agressões físicas e ao feminicídio.

Sobre a corrupção eleitoral, embora não seja uma violência inédita no Brasil, nesta eleição passou a ser algo desmedido em todo o país, numa clara evidência da baixa virtude moral. Segundo a Lei nº 9.840/99, a captação ilícita de sufrágio, ou seja, a conhecida compra e venda de voto, é crime. No entanto, ainda que seja uma conduta ilícita, a maioria dos candidatos trata essa prática hedionda como um negócio, uma espécie de “investimento”, quando ele faz o gasto ilícito, pensando ser ressarcido financeiramente caso seja eleito. E, uma vez eleito, ao passo que revigora seu capital político, refaz também seu capital financeiro, na maioria das vezes se apropriando indevidamente do dinheiro público. Já o eleitor, corrupto passivo, guarda na mente que nas eleições ele tem oportunidade de saciar seu desejo mórbido de adquirir alguma vantagem, por menor que seja, e sabendo que é ilícita. Por outro lado, tanto um como o outro são corruptos e criminosos passivos de sanções.

No Brasil, infelizmente, isso tudo mostra as diversas faces da violência que vem a cada dia contaminando o cenáriopolítico nacional. Logo, como uma metástase, acaba atingindo toda a sociedade brasileira, à qual muitas vezes responde com o máximo de hostilidade possível, seja por questão política ou por qualquer outra questão: classe social, religião, étnico-racial, gênero, orientação sexual ou condição econômica. À luz dessas ofensas –– pela falta de habilidade humana ––, há pessoas que tentam tornar absoluta a sua vontade ao mesmo tempo em que se tornam intolerantes, discriminatórias e brutais. Assim, numa eleição como esta, infestada de violências, não há vencedores. E diante do potencial perigo, alguém mais descrente pode até sugerir que, se Deus vier ao Brasil, que venha armado.

*Filósofo, escritor e consultor ambiental.