opinião

Soneto da hora final

Walber Aguiar*

Quando chegar o momento final

em que se acha na terra a guarida

Quando os aplausos chegarem ao fim

pelo bom papel que fiz em vida…

                                                                                Dorval de Magalhães

Calçou os chinelos, abriu o jornal e devorou cada letra, cada palavra. Dissipou, à sombra da mangueira , cada centímetro da ignorância que o cercava. Saiu da “caverna de Platão”, das trevas pavorosas da ilusão, do escuro e hermético mundo que se mostrava pela metade.

Tendo firmado os pés nas sandálias da humildade, caminhou pelo meio do verde. Respirou profundamente a brisa da manhã. Invejou o colibri que beijava cada flor, mas foi invejado porque escolheu apenas uma para beijar.

Contudo, mesmo amando a luz e o diálogo, um dia mergulhou na escuridão e no silêncio. Chegado o momento supremo, o adeus, a hora de dormir dentro da terra, ele se despediu solenemente. Por isso foi cantado, aplaudido, versejado.

Depois de tudo, quando a noite caiu fria sobre a solidão, Dorval buscou a companhia do Eterno. Passos firmes, porém lentos, seguiu por um enorme campo de morangos. Lembrou dos igarapés, buritis, caimbezais. Conheceu o estranho, estranhou o conhecido. Quis saber o sentido do sofrimento, a lógica do livre arbítrio, o motivo da angústia, a finalidade da morte.

Espreguiçado numa cadeira , entendeu, com uma certa resistência, que viver não é sofrer. Que a vida não segue apenas na canoa da dor, no barco sinistro da aflição. Descobriu que a tempestade leva a águas profundas e cristalinas, longe dos “portos seguros” da mediocridade.

Também soube que o livre arbítrio existe, à medida que a verdade se descortina no palco da ilusão, na arena do envolvimento com o outro, no calabouço Sartreano que nos condena a ter esperança. Se Deus não possui um controle remoto , infere-se que cada um “controle” a si mesmo. Mesmo assim, não vislumbrou saída para a caixa escura do destino, para o caminho traçado “a priori”.

Na confusão entre o livre que possibilita e o claustro que determina, nasceu a angústia.  Emergiu o sentimento de tristeza, a armadilha da depressão. Daí ele entendeu que há um limite, uma cerca, um muro que circunscreve, estabelecendo a fronteira, a geografia da liberdade. Por isso a alma geme e suporta angústias, por isso a própria natureza é vítima da estupidez e da vaidade humanas.

Ali, naquela nova dimensão da existência, onde o tempo era ausente e a fadiga não se mostrava, ele buscou a compreensão mais ampla e profunda de todas as coisas que não conseguia entender. Mergulhou de cabeça na frieza e na realidade absurda do fim. Quis saber porque a morte era inevitável. Porque a hora final era tão difícil e dolorosa.

Pensou no que dissera o poetinha Vinicius de Moraes, ao se referir ao último ato: “Então, pergunto a Deus, escute amigo, se foi pra desfazer porque é que fez?”. No silêncio que se seguiu, o poeta compreendeu que o amor dá sentido à tudo e é forte como a morte. Que morremos ao nascer, ao penetrar na realidade louca de um mundo alucinado, frio, mudo e assustador.

Era o fim da tarde. O poeta calçou os chinelos, fechou o jornal, apertou na mão de Deus e foi descansar…

Poeta, professor de filosofia, mestre em letras, historiador e membro da Academia Roraimense de Letras.    [email protected]