OPINIÃO

Um complexo sistema hierárquico

Um complexo sistema hierárquico de merda

Sebastião Pereira do Nascimento*

De maneira ideal, um chefe deve se destacar pelas qualidades, competência, poder de decisão e pela capacidade de chegar ao consenso comum. No entanto, na realidade nem sempre funciona assim. A escolha de um chefe implica em muitas coisas e, dependendo da situação, pode-se escolher um chefe ideal ou pode-se fazer uma escolha imprópria, escolhendo um chefe sem nenhuma qualidade para tal finalidade. Com isso em mente, a partir de uma representação alegórica, vamos traçar um exemplo, a começar, caso fosse preciso escolher um chefe, entre os órgãos do corpo humano, para “comandar” todo organismo. Como critério de escolha, vamos considerar as diferentes atribuições fisiológicas de cada órgão, as quais podem suscitar a melhor escolha para o poder de mando. Diante da questão: quem seria o chefe dos órgãos humanos?

A cabeça logo responde que seria ela, pois protege a parte mais sofisticada do corpo humano: o cérebro, o órgão mais importante do sistema nervoso responsável por controlar cada uma das funções que ocorrem no corpo. A cabeça lembraria ainda que é nela que estão contidos os órgãos do sentido: olhos, ouvidos, nariz e boca. Além disso, por ser guardiã do cérebro, faz com que seja partícipe das funções motoras e psíquicas que estabelece o equilíbrio do corpo e a mente.

Os braços vão dizer que seriam eles, o chefe, pois como membros superiores se acham indispensáveis para a labuta diária do ser humano. Sem os braços o corpo não teria tanto aproveitamento diário; são eles que permitem segurar, levantar e arremessar objetos, além de escrever, trabalhar, abraçar, apertar, entre outros movimentos. Também, os braços são imprescindíveis em situações onde o corpo precisa de proteção e firmeza.

Os pulmões diriam ser eles o chefe, pois são os órgãos mais importante do sistema respiratório. Eles alegam que qualquer pessoa sem os pulmões não conseguiria metabolizar o ar que respira, algo prioritário para sua vida. Eles admitem ainda que são soberanos na função de oxigenar o sangue e eliminar o gás carbono, permitindo que o ar respirado entre em contato com o sangue que circula em todo o corpo.

A pele, por se considerar o maior órgão do corpo humano, julgaria ser ela, a chefe. Isso porque ela reveste todo o corpo humano protegendo contra as agressões externas. E como um órgão protetor, se compara como uma capa de proteção contra fungos, bactérias, produtos químicos, agressores físicos e fatores ambientais, como o sol e outros elementos nocivos ao corpo humano.

Os rins também alegariam ser eles o chefe, pois exercem tarefas fundamentais para o funcionamento do corpo. Eles atestam que filtram o sangue e removem todos os resíduos tóxicos — resultantes do metabolismo corporal — presentes na circulação sanguina. Os rins dizem ainda que proporcionam o equilíbrio hídrico no corpo, uma vez que eliminam o excesso de água, sais e eletrólitos do organismo, fazendo diminuir a chance do aumento da pressão arterial.

O coração, sabendo da sua máxima importância para a vida animal, adverte ser ele o mais preparado para chefiar o corpo humano, pois é o cara que garante que o sangue seja transportado para todo o organismo, permitindo o funcionamento adequado do corpo em toda dimensão. O coração, em conclusão lógica e ausência de hipocrisia, alerta ser impossível que a vida continue quando ele resolve parar de funcionar.

O fígado acredita ser ele o melhor chefe do corpo humano, visto que tem como principais funções ajudar na digestão com a produção da bile, armazenar e produzir diversas substâncias importantes para o corpo e também filtrar substâncias tóxicas e microrganismos prejudiciais. O fígado, manifestando opinião favorável sobre si próprio e sem falsa modéstia, diria ser a maior glândula do corpo humano.

O pâncreas sem deixar por menos, diria ser responsável pela produção de enzimas que ajudam na digestão dos alimentos. Logo lembraria também que é ele quem produz um dos hormônios mais importante do corpo humano: a insulina. Sem a sua atuação, grande quantidade de açúcar cai na circulação sanguínea, fazendo com que ele aciona a produção de insulina, a qual promove uma limpa nos vasos do corpo ao colocar o açúcar para dentro das células.

Os ouvidos, por vários fatores, diriam ser essencial para eles que sejam o chefe, pois são órgãos muito sensíveis, que, além de permitirem o sentido da audição, também são responsáveis pelo equilíbrio do corpo humano. Os ouvidos acusam ter a capacidade de permitir que a pessoa se comunique e usufrua do mundo ao seu redor, trazendo um impacto significativo na qualidade de vida humana.

Os olhos despertam interesse dizendo que eles seriam os melhores chefes, visto que são responsáveis pela captação da luz, quando a retina a registra por intermédio de milhões de células fotorreceptoras. Na sequência, através de impulsos elétricos envia as informações visuais, por meio do nervo óptico, para o cérebro, que logo decodifica, reconhece e interpreta a imagem.

O nariz alega ser o responsável pelo processo de filtragem do ar que respiramos. Ele faz menção a sua função de aquecer e umidificar o ar que chega aos nossos pulmões. Certamente o nariz se acharia ainda mais apto a chefiar o corpo, se ouvisse o que os cientistas estadunidenses disseram recentemente, que os seres humanos são capazes de sentir até 1 trilhão de aromas diferentes, os quais são enviados ao cérebro pelo bulbo olfativo, que interpreta o cheiro.

A boca esclarece que como um órgão quase polivalente, está apta ao cargo de chefia, pois, além de comer, mastigar e engolir os alimentos, tem também como função, em simbiose com a laringe e faringe, ajudar o ser humano a respirar e falar. A boca enaltecia ainda a importância das glândulas salivares em sua cavidade oral que produzem a saliva, a qual mantém a boca úmida e ajuda na digestão dos alimentos.

As pernas atestam que, apesar de serem consideradas membros inferiores, apresentam importantes funções na vida das pessoas, pois além de serem responsáveis pela locomoção dos seres animais, são também responsáveis pela sustentação de todo o peso do corpo. Convencidas do seu próprio valor, as pernas dizem ser as únicas responsáveis pela mobilidade corporal.

Ao descerrar da cortina, antes da definição de quem seria o chefe para o corpo humano, a merda, só pelo fato de ser ocupante do intestino grosso, se viu no direito de concorrer ao cargo, alegando que de todos os pretendentes ela era a mais apta para chefiar o organismo humano. Como agregadora de bactérias presentes no intestino, a merda alerta que caso ela caia no sistema imunológico, nenhuma pessoa resiste por muito tempo, pois é disseminadora de uma voraz infecção generalizada capaz de levar, progressivamente, todos os órgãos à falência — onde, conforme estatística médica, uma em cada duas pessoas não resiste se não tratada de forma precoce e imediata. Assim, em face desse insidioso poder, a merda seria a escolhida para chefiar o corpo humano.

Em conclusão, o cargo de chefia sempre é comandado por indivíduos investidos de determinado poder capaz de ter pelo menos uma razão (boa ou má) para ocupar o lugar de mando. Logo, a partir do que foi possível ver nesta alegoria, o maior poder de mando foi destinado à merda. Então, considerando que há no organismo humano e também no nosso mundo real um complexo sistema hierárquico, e diante das circunstâncias, podemos afirmar que em todos os contextos humanos qualquer merda pode ser chefe.       

*Consultor ambiental, filósofo e escritor. 

** Os textos publicados nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião da FolhaBV