Sebastião Pereira do Nascimento*
No centro urbano de uma grande metrópole, o dia começa movido pelos acontecimentos diários, onde uma multidão se entrelaça ao mesmo tempo em que cada pessoa se dissolve em si, não se importando uma com as outras. Naquele dia, nada de excepcional aconteceria se num banco da praça central não tivesse um sujeito, um tipo incomum, mergulhado num excesso de silêncio, olhando a multidão passar.
Após horas e horas de abstração, do alto da embriaguez silenciosa, o sujeito indaga a si próprio.
— Será que sou igual a essas pessoas que aqui passam? Pessoas que não se falam, que não se tocam, que não se ajudam, que não se curvam…
De repente, o sujeito, ainda um tanto introspectivo, estranhamente sai a esmo pelo canteiro central da avenida e, a passos lentos, se faz ausente, sem, contudo, abster-se da agitação em sua volta. Numa esquina mais turbulenta, o sujeito estanca. Volta-se para os transeuntes, curva-se para frente, faz um gesto de referência, ergue-se novamente e começa pronunciar:
— A vida na Terra surgiu há cerca de 4 bilhões de anos. O planeta Terra, que sustenta a vida, surgiu há cerca de 5 bilhões de anos. O sistema solar, que é bem maior que a Terra, surgiu há cerca 6 bilhões de anos. O Universo, que é bem maior que todos, surgiu há cerca de 14 bilhões de anos. E no meio desse superlativo: o homem. Um ser insignificante e imperfeito, que prometeu à humanidade prazeres infinitos, todavia alicerçados pelo assolamento humano…
De súbito, o sujeito cessa o discurso e vê que as pessoas passam, fitam-no, mas não lhe dão atenção. Ora! Por que dar atenção a um sujeito que se opõe às benesses do mundo?
Mais atento, o sujeito identifica que a desatenção não se dava pelo fato de ser um sujeito incomum, mas pelo medo: medo de ouvir, medo da verdade, medo do dever, medo da educação, medo da cultura, medo do aprendizado, medo da honestidade, medo da humildade, medo do trabalho, medo da justiça, medo de amar, medo de partilhar, medo de permitir, medo da felicidade, medo do recomeço, medo da morte e medo do fim.
Diante do impasse, o sujeito, percebendo o grande medo no semblante das pessoas, assimila que em toda história da humanidade, jamais houve um período em que o medo fosse tão profundo. Por conta disso, meticulosamente anunciou:
— O medo deve ser banido do exercício de ouvir, visto que todo ser humano tem a capacidade de percepcionar e por meio desse atributo, alcançar a realidade, saindo do mundo dos sentidos que o aprisiona para o mundo das ideias que o faz liberto e essencial à sociedade.
— O medo deve ser banido do exercício da verdade, uma vez que todo ser humano é capaz de construir uma “verdade” em conformidade com a sua própria consciência, ainda que essa verdade possa ser subjetiva e, sobretudo, questionável.
— O medo deve ser banido do exercício do dever, dado que todo ser humano deve ter a responsabilidade de cumprir com suas obrigações e deliberar positivamente sobre seus afazeres. No entanto, que seja por razões que emanam resultados salutares a todos.
— O medo deve ser banido do exercício da educação, já que todo ser humano consiste em ser civilizado e não deve nunca hesitar em praticar as boas maneiras, especialmente as atitudes que impulsionam as relações harmônicas e o respeito pelo outro.
— O medo deve ser banido do exercício da cultura, uma vez que todo ser humano possui a propriedade de absorver a cultura por meio da relação recíproca com seu corpo social. Por questão óbvia, a pessoa só se torna provida de cultura a partir dessa interação social.
— O medo deve ser banido do exercício da aprendizagem, de modo que todo ser humano é dotado de cognição e não deve temer ser um aprendiz intencional do outro. Sabe-se que o aprendizado se concebe em face da relação harmônica com outras pessoas. Não como um ser passivo, mas como um sujeito que age, reage e cresce.
— O medo deve ser banido do exercício da honestidade, em razão de que todo ser humano deve ser provido das melhores intenções. Aquelas que ordenam a qualidade própria das pessoas e que preservam estreitas relações com os princípios das causas verdadeiras.
— O medo deve ser banido do exercício da humildade, visto que todo ser humano deve ser desprovido da prepotência e da arrogância. Sendo, portanto, capaz de reconhecer as suas próprias limitações e se manifestar sempre de maneira desafetada e, por conseguinte, impor limites à vaidade.
— O medo deve ser banido do exercício do trabalho, uma vez que todo ser humano deve ser afeito ao trabalho livre e prolífero. Pois é dessa condição plena que a sociedade humana se beneficia e protagoniza um mundo mais próspero e satisfatório para todos.
— O medo deve ser banido do exercício da justiça, dado que todo ser humano deve insistir na assiduidade de oferecer ao outro o que lhe é devido. Algo que suscita a equidade, permite a igualdade e promove a reação positiva face às causas e alegações injustas.
— O medo deve ser banido do exercício de amar, em razão de que todo ser humano deve possuir um sentimento de amor pelo outro. Pois o arbítrio de amar é uma livre disposição de todos, sendo nessa circunstância repousar os afetos e as emoções que compensam a existência do ser humano.
— O medo deve ser banido do exercício de partilhar, uma vez que todo ser humano conserva na natureza instintiva a prática do altruísmo. E ninguém nunca deve hesitar em partilhar algo com outrem, agindo sempre de maneira solícito e incondicionalmente.
— O medo deve ser banido do exercício de permitir o outro, visto que todo ser humano tem o direito de ser alguém definido por ele próprio, mas que tem no outro a sua parte social. E aquele que desdenha do outro, jamais será alguém se nunca se permitir ser igual a todos.
— O medo deve ser banido do sentido da felicidade, uma vez que todo ser humano é munido de sentimentos de bem-estar. E ainda que isso não seja o esmero da plenitude, mas é o catalisador do impulso para o desejado encontro com a felicidade plena.
— O medo deve ser banido do exercício do recomeço, já que todo ser humano é suscetível à derrota e se refazer quantas vezes for preciso. Sendo cada recomeço possível na medida em que a consciência consiga exprimir o desejo de recomeçar.
— O medo deve ser banido da certeza da morte, de modo que todo ser humano deve compreender que todos os organismos viventes são naturalmente dotados de um ciclo de vida. Assim, é preciso consentir que o destino de todos, desde o princípio, é a morte.
— O medo deve ser banido da inevitabilidade do fim, uma vez que todo ser humano deve considerar o fim das coisas como algo irremediável. Ainda que se possa fazer alguma coisa para o final ser mais satisfatório para uns ou menos impactante para outros.
— Portanto, como diriam os estoicos, o medo mesmo quem faz é a pessoa. Por definição, aquela que, por medo, ignora as razões de agir como humano. Logo, o medo pode ser anulado com entendimentos que tonificam meios para alcançar a sustentável leveza do ser.
FIM DE ANO. TEMPO DE REFLEXÃO!
*Filósofo, escritor e consultor ambiental. Autor de diversos livros, dentre eles “Recado aos Humanos”, publicado pela editora CRV.