*Mayra Cardozo
Na quarta-feira, dia 20, a justiça de Barcelona aceitou o pedido de liberdade provisória do ex-jogador brasileiro Daniel Alves, que foi condenado por estupro em fevereiro. De acordo com a decisão, os juízes da Audiência Provincial de Barcelona – a instância mais alta da Justiça da cidade -, a liberdade provisória foi dada sob fiança de 1 milhão de euros (cerca de R$ 5,4 milhões). A defesa ainda aguarda a sentença definitiva.
O que acontece é que, no último dia 22 de fevereiro, Daniel Alves foi condenado a quatro anos e seis meses de prisão pelo estrupo de uma mulher de então 23 anos. A decisão, tomada pelo Tribunal de Justiça da Espanha, aconteceu exatos 399 dias depois da prisão preventiva do jogador, e 420 dias do crime.
O caso, que aconteceu em 30 de dezembro de 2022, iniciou com a ativação de um protocolo chamado “No callem”, que auxilia vítimas de violência sexual no momento (ou quase) em que o crime acontece.
O segurança da boate Sutton, onde aconteceu o crime, foi quem acionou o protocolo. De acordo com ele, o sócio e o gerente da boate, a mulher não queria denunciar o crime por se tratar de um jogador famoso. “Ninguém vai acreditar em mim”, disse.
O que a decisão contra Daniel Alves nos mostra?
É preciso analisar que este é um caso que percorreu em um sistema judiciário que visa ser mais acolhedor em relação às vítimas. A justiça espanhola trabalha em um sistema que preza por um olhar protetor para a vítima e uma preocupação com a não revitimização. Logo, quando olhamos para essa condenação, entendemos superficialmente que a justiça foi feita.
No entanto, é importante falarmos sobre quais foram os custos dessa justiça. Apesar de ser um sistema que tem a preocupação em não revitimizar. Durante todo o processo foi observado e analisado, a forma que a vítima estava dançando na festa, se ela estava alcoolizada ou não, qual a sua vida pregressa e se ela deu a entender que queria alguma coisa com o autor.
É inadmissível que, em casos de violência sexual, a vítima ainda seja olhada de forma persecutória, com um olhar de que ela, de alguma forma, tentou ou “fez um convite” ao homem que a abusou sexualmente.
Sabemos que este é um olhar machista e enraizado na objetificação dos corpos femininos, uma vez que se tem a construção social de que o homem está na dele e a mulher, que simboliza o pecado, é que o atenta para cometer estes atos.
Essa é uma visão construída historicamente desde cedo e o sistema de justiça penal, independente se for o brasileiro ou espanhol, acaba tendo como natureza raízes machistas e patriarcais que continuam perpetuando essa lógica.
Os homens sempre se protegem?
É importante também refletirmos sobre a fixação da pena atribuída à Daniel Alves, que foi muito abaixo do que o pedido pelo promotor de justiça do caso. Ou seja, mesmo quando a vítima é escutada e sua versão validada, a pena pode não ser proporcional ao que deveria.
Neste caso específico, durante o início de todo o processo, a família do jogador de futebol, Neymar Jr, pagou uma multa de R$900 mil (150 mil euros) à Justiça espanhola, com o intuito de diminuir a pena de Daniel pela metade em caso de condenação.
É necessário saber que existe uma lógica por trás de que homens protegem homens e são cúmplices entre si. É um sistema doente, onde depois de todo o trauma vivenciado pela vítima, ela também passa por uma série de violências perpetradas pelo Estado, que olham para a sua vida antes do crime, a questionam sobre posturas que não deveriam ser questionadas e valoradas, se a justiça se atentasse apenas aos fatos da denúncia.
No momento em que a vítima quebra todos os obstáculos e é escutada, a pena acaba não sendo proporcional. Isso tudo porque existe uma lógica de companheirismo, de parceria, um pacto da masculinidade tóxica que está por trás de tudo isso.
A decisão, no caso de Daniel Alves, é um avanço considerando o cenário da justiça brasileira, mas também nos mostra que criar protocolos e leis que protejam não são suficientes. É preciso mudar as lógicas, e isso inclui a lógica da sociedade e a lógica dos operadores do Direito.
No fim, a justiça está sendo feita?
A sentença de Daniel Alves dá uma sensação de alívio para muitas mulheres, entretanto a facilidade para conseguir uma liberdade provisória deixa um gosto amargo na boca para muitos. Em uma justiça como essa, podemos ter a sensação de que a justiça está realmente sendo feita?
Para além disso, também acredito que precisamos ter um processo penal que seja garantista na perspectiva de gênero. E o que significa isso?
Todos os princípios garantistas visam garantir os direitos humanos dentro do processo penal. Eles devem olhar para a proteção da vítima em casos de violência de gênero e pensar na proteção da vítima, pautada na ideia de que a violência de gênero possui características peculiares e devem ser observadas quando estamos em meio a um processo penal em que ela está envolvida.
Com pequenos avanços, é esperado que um dia cheguemos em uma realidade ideal: em que a justiça irá olhar para a vítima sem procurar meios para justificar o crime ocorrido, e não haverá cúmplices que estejam dispostos a diminuir a gravidade de um crime.
*Mayra Cardozo, mentora de Mulheres e Advogada, especialista em gênero. Idealizadora do método alma livre criado para auxiliar mulheres a saírem de relacionamentos tóxicos e abusivos.