Sebastião Pereira do Nascimento*
No último dia 16, o governo federal, através do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, anunciou que vem trabalhando para efetivação do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (PRONARA), criado há dez anos, mas que nunca foi posto em prática. Sendo as principais diretrizes do programa reduzir o uso de agroquímicos altamente perigosos e incentivar o uso dos chamados bioinsumos: produtos de origem biológica, compostos por microrganismos, enzimas, extratos orgânicos, etc., que podem ser utilizados na agricultura, pecuária, aquicultura e florestamento para melhorar as condições do solo e controlar pragas e doenças. Em que pese esses produtos biológicos, pela legislação brasileira, também são considerados “agrotóxicos” (de baixo impacto), em função da mesma finalidade agrícola que têm os agentes químicos sintéticos: fertilizantes, herbicidas, inseticidas, fungicidas, acaricidas, nematicidas, entre outros.
De acordo com o ministro da Reforma Agrária e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, o governo fará uma portaria contendo a lista das substâncias que passarão a ser proibidas. A iniciativa tem o aval da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, instância composta paritariamente por representantes do governo e da sociedade civil. Apesar de ter sido aprovado em agosto de 2014, fontes do próprio governo alegam que o PRONARA já poderia ter saído da gaveta do executivo não fosse a trava do Ministério da Agricultura. Em 2015, foi cancelado pela então ministra da Agricultura, Kátia Abreu, depois sabotado pela ministra Tereza Cristina, e hoje boicotado pelo ministro Carlos Fávaro. Todos defensores do agronegócio e, por extensão, comprometidos com as indústrias agroquímicas.
Ainda em relação ao PRONARA, o ministro Paulo Teixeira afirmou que o programa está também inserido no Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, voltado para a produção de alimentos saudáveis, também lançado recentemente pelo governo federal. Logo, serão avaliadas diversas formas de estímulos, inclusive financeiros, para os produtores de pequena e grande escala que quiserem substituir os agentes químicos de alta potência pelos bioinsumos.
Sobre o uso crescente de agroquímicos no Brasil, começa a partir do final da década 1990 com o governo FHC, passando pelo governo Lula, quando o Brasil adotou efetivamente a política de expansão do agronegócio, levando a agricultura de comandites a exibir um desempenho expressivo na época, tirando o país do sexto lugar entre os maiores exportadores de grãos do mundo para o terceiro, atrás apenas dos Estados Unidos e da União Europeia. A partir daí, na medida que essa agricultura avança, vem a liberação e o aumento progressivo de agrotóxicos.
Nos últimos anos, com a escalada do agronegócio, surtiu pressão pela liberação de agrotóxicos de alta potência, levando os governos de plantão, em conluio com parlamentares da chamada “bancada ruralista”, chancelados por organizações e setores do agronegócio, além do lobby das indústrias agroquímicas, a alterar leis, eliminar regras e afrouxar medidas que tratavam da liberação e do controle de venenos agrícolas em todo o território nacional.
Para se ter uma ideia do uso massivo de agrotóxicos, a contar de 2016, tem-se uma liberação exponencial desses elementos químicos, quando naquele ano, o governo Temer liberou 277 agrotóxicos, inaugurando uma série de recordes no país. Desde então, o Brasil tem batido sucessivos recordes de novos registros e uso intensivo de venenos agrícolas, inclusive com a utilização de produtos altamente prejudiciais à saúde humana e ao meio ambiente, muitos deles banidos em outros países e vendidos ilegalmente no Brasil. Isso resulta no que dizem alguns setores que: a legislação permissiva no Brasil torna o país a mina de ouro das indústrias agroquímicas da Europa, onde as multinacionais Bayer, Basf e Syngenta, p. ex., encontram no Brasil um dos seus principais mercados, já que conseguem colocar à venda produtos proibidos na Europa e comercializados facilmente aqui.
Segundo dados da Coordenação-Geral de Agrotóxicos e Afins (CGAA) do Ministério da Agricultura, já em 2017, no segundo ano do Governo Temer, foram liberados 405 novos defensivos químicos e, em 2018, no mesmo governo, foram liberados cerca de 450 registros de agrotóxicos. No governo seguinte, em 2019, foram liberados 474 novos venenos. Em 2020, foram 493 registros, sendo a maioria produtos genéricos, isto é, produtos que se baseiam em outros já existentes. Em 2021, foram 562 novos produtos liberados e, em 2022, foram registrados 652 agroquímicos. Durante os quatro anos de governo passado, foram liberados 2.182 tipos de agrotóxicos, sendo 98 com princípios ativos inéditos; o restante considerado genérico – compostos químicos já existentes no mercado. Já em 2023, houve uma pequena redução, com registro de 489 venenos de potencialidade elevada e 90 produtos de baixo impacto. Mas, apesar da queda, ainda é um número muito alto, considerando o que possa vir ainda daqui para frente.
Segundo a FAO (agência especializada da ONU), atualmente o Brasil vem usando mais de 800 mil toneladas/ano de substâncias tóxicas na agricultura, o que equivale a 22% do volume usado em todo o mundo. A maior parte desses produtos é aplicada no cultivo de commodities. Áreas de soja, milho, algodão e cana-de-açúcar, as quais recebem cerca de 84% dos agrotóxicos. Já as áreas onde se planta a base alimentar do país representam 1,6% do total, cultivadas por mais de 420 mil agricultores familiares em pequenas propriedades.
Alguns agrônomos concordam que o jeito de se produzir alimentos em larga escala e quase o ano todo fez com que agricultores ficassem dependentes do uso de agrotóxicos. Quanto mais se aplica o veneno, mais a praga cria resistência. É o que diz o criador do termo “agrotóxico” no Brasil, o agrônomo e saudoso professor Adilson Paschoal (Esalq/Piracicaba). O mesmo complementa que “apesar de toda a parafernália química, a indústria de agrotóxicos jamais conseguiu eliminar definitivo uma espécie daninha e diminuir as perdas causadas por elas, perdas essas que continuam as mesmas de 40 anos atrás, onde cada vez mais o princípio ativo do agrotóxico acaba tendo que ser misturado a outros para funcionar melhor. Por isso, o modelo químico de agricultura falha pelo seu princípio, e o uso de venenos tem de ser contínuo, no benefício apenas das indústrias agroquímicas.”
A grande monocultura, pela característica de alterar o ambiente natural e colocar juntas plantas de uma mesma espécie e em uma área extensa, favorece a reprodução de certos organismos, os quais, na ausência de competidores naturais, vêm a constituir populações numerosas de insetos, bactérias, fungos, ervas daninhas, etc., passando a ser considerados pragas. Essas flutuações de pragas passam a ser frequentes, com repercussão em todo o agroecossistema e, por extensão, atingem também lavouras vizinhas, trazendo problemas para produções orgânicas ou para plantações domésticas (palmares) e aos ambientes naturais em volta. Em última saída, os agricultores recorrem aos produtos químicos, reduzindo ainda mais a estabilidade do sistema, fazendo com que novas erupções de pragas voltem a ocorrer mais resistentes. O resultado é mais agrotóxicos de alta potência.
Em decorrência disso, o Instituto Nacional do Câncer (Inca) alerta que os agrotóxicos vêm cada vez mais comprometendo a saúde da população brasileira, porém, não só as pessoas que consumem os produtos “envenenados”, mas também os trabalhadores que exercem atividades diretamente dentro da produção ou de comunidades circunvizinhas às áreas de grande cultivo. O Inca considera um número muito assustador, sobretudo quando se trata de produtos com princípios ativos altamente cancerígenos, os quais deixam resíduos nos alimentos consumidos pela população. No caso dos alimentos vegetais, em alguns casos, o pesticida fica apenas na casca do produto, podendo ser eliminado em uma lavagem. Em outras situações, ele age dentro do organismo da planta e de seus frutos, e não é possível eliminar 100% esse resíduo — sobre os produtos contaminados, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) considera que 25% dos alimentos de origem vegetal consumidos no Brasil têm resíduos de agrotóxicos acima do permitido, inclusive por venenos sem autorização dos órgãos de controle.
Além de cancerígenos, estudos informam que muitos desses produtos químicos são causadores de diversos outros agravos: diabete, hipertensão, doenças cardiovasculares, distúrbios neurológicos e hormonais, obesidade, etc. Alguns apresentam princípios ativos teratogênicos: agentes que causam anomalias congênitas, tanto nos humanos quanto em outras espécies animais. Contudo, apesar de a legislação proibir o uso de alguns desses agrotóxicos potencialmente nocivos, o Inca ressalta que existe no país o uso camuflado desses produtos com maior toxicidade, para os quais não existe limite seguro de exposição. Quando alguém entra em contato, já está em risco. Não há como estabelecer o limite.
Outros estudos mostram também que o consumo ou o contato sucessivo com agrotóxicos vem causando diversos distúrbios endócrinos, por exemplo, causando puberdade precoce em crianças, onde meninas antes da puberdade têm o desenvolvimento das mamas e outras disrupções endócrinas. (Aguiar, A.C. 2017. Más-formações congênitas, puberdade precoce e agrotóxicos: uma herança maldita do agronegócio para a Chapada do Apodi (CE). Mestrado em Saúde Pública, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Ceará, UFCE).
Soma-se a isso a contaminação dos ecossistemas brasileiros, que vem promovendo alterações em muitas espécies da fauna locais, colocando várias espécies em risco de extinção e afetando o equilíbrio da cadeia ecológica com a perda da biodiversidade. Por exemplo, a mortalidade ou deformação genética de espécies não-alvo, como as abelhas, as quais, dependendo do ecossistema considerado, são responsáveis por 90% da polinização das plantas angiospermas. Vários estudos sobre o assunto (e.g. desenvolvidos pela USP, UNESP, PUCRS, entre outras) apontam que os principais causadores desse extermínio das abelhas são os venenos, fipronil (suspenso no Brasil a partir de 2023), sulfoxaflor e clorpirifós que, mesmo proibidos em outros países, seguem liberados no Brasil. Assim como o Acefato, Atrazina e clorpirifós, também banidos na Europa por causar doenças humanas e graves problemas ambientais, os venenos têm sido usados massivamente no país. No caso do clorpirifós, especialistas afirmam que os danos causados pelo pesticida vão de distúrbios hormonais a deficiência mental.
Estudos realizados no pantanal (Vicente, E.C. & Guedes, N.M.R. 2021.Organophosphate poising of Hyacinth macaws in the Southern Pantanal, Brazil. Scientific Reports) mostram que, mesmo distante das áreas mais degradadas pela monocultura, as araras-azuis do pantanal, p. ex., são atingidas pelos resíduos químicos deixados pelos organofosforados. Da mesma forma, as antas. Mamíferos silvestres de grande importância para o equilíbrio do ecossistema pantaneiro. Ambas as espécies são bastante afetadas pela dispersão aérea desses produtos — Os estudos indicam que os compostos organofosforados (amplamente utilizados na plantação agrícola como inseticidas) provocam diferentes manifestações toxicológicas, deixando sequelas persistentes, como problemas no sistema nervoso central e degeneração de células musculares, comprometendo sobretudo a musculatura respiratória dos animais, incluindo os humanos.
Diante de todas essas vicissitudes, o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos — que na verdade não é um programa de governo, mas sim um programa de estado voltado para a saúde pública — vem somar-se a outras iniciativas que já vêm sendo desenvolvidas por alguns produtores (da agricultura familiar ou do agronegócio) pelo Brasil afora. O PRONARA soma-se ainda a uma tendência mundial que visa reduzir o uso excessivo de agroquímicos de alta toxicidade na agricultura. Oportunamente, seria apreciável se a sociedade brasileira se inteirasse dos benefícios que esse programa pode trazer para a saúde da população, bem como para o bem-estar ambiental e, como a principal afetada, passasse a advogar a sua efetiva implantação e funcionalidade, haja vista que diariamente milhões de pessoas vêm sendo contaminadas silenciosamente pelo consumo de produtos infectados pelos agrotóxicos.
Na realidade, cada vez que colocamos uma refeição na mesa — tanto de origem vegetal quanto animal —, via de regra ela vai estar ali com alguma dosagem (pequena ou grande) de agroquímicos: fertilizantes, inseticidas, fungicidas, acaricidas, nematicidas e herbicidas. Assim, como forma de atestar historicamente essa realidade atual, cito um trecho do livro “Primavera Silenciosa”, da bióloga estadunidense Rachel Carson, quando em 1962 ela já pronunciava que: “… cada um dos seres humanos está agora sujeito a entrar em contato com substâncias químicas perigosas [“elixires da morte”como ela designa os agrotóxicos], desde o momento em que é concebido, até o instante de sua morte”.
*Consultor ambiental, filósofo e escritor. Membro do corpo editorial da revista científica “Biologia Geral e Experimental”. Autor de diversos trabalhos científicos, além de ensaios poéticos e filosóficos.