OPINIÃO

USAID – EUA e a possível política de interferência na América Latina: “O império e os novos bárbaros”

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As Guerras Púnicas foram uma série de conflitos armados entre Roma e Cartago, que duraram de 264 a.C. a 146 a.C, tendo como causa mor a disputa pelo controle comercial do mar Mediterrâneo. Na primavera de 146 a.C., durante a Terceira Guerra Púnica, Roma derrotou Cartago. 

A reabertura das discussões entre o conflito NORTE/SUL se deu, sobreveste, após a concepção da Obra “O IMPÉRIO E OS NOVOS BÁRBAROS” do médico, escritor e diplomata francês do Séc XX, Jean-Christophe Rufin, cujo prisma investigou a ideologia que incentivou o monitoramento ilícito promovido pelos EUA na América Latina.

No aludido livro, Rufin discute a relação entre o Norte (países desenvolvidos) e o Sul (países em desenvolvimento), abordando desafios políticos, econômicos e culturais, utilizando o apanágio (atribuição exclusiva) da civilização romana de outrora, a título de modelo para a análise da ordem mundial instaurada após o fim da Guerra fria, sendo o Norte (Império Romano) representado atualmente pelo bloco de países desenvolvidos (EUA, Alemanha, Inglaterra, França), ao passo que o Sul (Cartago) se constitui pela coalizão contemporânea dos países em desenvolvimento (América Latina, África subsaariana, Ásia) considerando-os, portanto, como os novos Bárbaros.

Rufin discorre sobre às transformação das relações internacionais após a superação do sistema bipolar encontrado em antanho (nos tempos antigos) para um modelo no qual o Ocidente, liderado pelos Estados Unidos, busca consolidar sua hegemonia sob o pretexto de levar civilização, democracia e direitos humanos a regiões consideradas “bárbaras” ou instáveis, apontando uma nova forma de dominação que sobrepuja ocupações militares e consolida estratégias de influência política, econômica e cultural.

O historiador grego Políbio, o mesmo que acompanhou o general e estadista romano Cipião Africano na Terceira Guerra Púnica (149–146 a.C.), foi vanguardista na ideia de oposição entre o todo-poderoso Império Romano e a barbárie (germanos, gauleses etc.). Outrossim, apontou em direção à dupla missão dos romanos: civilizar a terrea incognitae (“terra desconhecida”) e proteger-se das investidas dos povos incivilizados.

Na qualidade de espectador sagaz dos eventos que marcaram a fase prefacial da última década do século XX, Rufin sustenta, na seção 2 de seu livro, que estamos diante de um novo embate, um conflito que assinala o início ou a revitalização da ideologia de fronteira. De tal modo, a exegese sugerida contrapõe a antiga civilização romana, agora refletida pelos países imperialistas do Ocidente aos cartagineses, representados pelos novos bárbaros dos países em desenvolvimento, predispondo a moldura do prélio (conflito) contemporâneo: “Norte versus Sul. O primeiro, tolerante, desenvolvido, ponderado e disposto a tomar as iniciativas necessárias à sua preservação frente ao inimigo, à medida que o segundo é incivilizado, improdutivo, superpovoado, intolerante e busca aproveitar-se de suas contradições para impor ao Norte necessidades.

Seis questões fundamentais sobre as quais o Norte deve se posicionar, segundo a obra, incluem:

  • 1-Novas terras incógnitas: os romanos designavam pelo termo terrea incognitae “”terra desconhecida”, referindo-se àquelas situadas fora do império., pois os bárbaros eram incontáveis, da mesma forma não se sabia exatamente o que ali se passava. De maneira paralela a África hodierna expõe o colapso entre os Estados alinhados ao seu continente, deixando o Ocidente alheio a uma expressa faixa territorial.
  • 2-Explosão demográfica: o crescimento populacional elevado torna o Sul uma ameaça para o Norte, de tal sorte, o medo da imigração está na origem da ideologia de fronteira, obrigando os países do norte a reforçar sua segurança, limitando o acesso aos seus territórios, incentivando o controle da natalidade e propondo a criação de Estados tampões para refrear as correntes migratórias.
  • 3-Arquipélago da Miséria: O ambiente caótico das metrópoles sulistas se consolida, tornando-se um atrativo acessível às populações miseráveis, como as cidades do México e São Paulo.
  • 4-O Sul tem o condão de reinterpretar as ideologias importantes do Norte segundo as suas necessidades:  Rufin aponta para a crença, oriunda do senso comum, em relação à autonomia adquirida pela ideologia ora assimilada, ou seja, a capacidade de ganhar vida própria, adquirindo, às vezes, um vigor extemporâneo pari passu ao processo de insolvência consubstanciado no continente europeu. O escritor e diplomata reforça que o Sul não se compraz pela mera imitação das influências ideológicas advindas da Europa e Estados Unidos, transformando-a com o objetivo de conduzir suas próprias estratégias.
  • 5-Os países do Sul buscam um protagonismo na corrida armamentista, em alguns casos, desenvolvendo armas nucleares, a exemplo da Índia e Paquistão ou exportam armamentos convencionais de sua linha produtiva, considerando o caso do Brasil.
  • 6-A incapacidade dos microprojetos financiados pelo NORTE em modificar substancialmente a realidade existente nos países do SUL.

As recentes denúncias feitas pelo ex-chefe da divisão de informática do Departamento de Estado dos EUA durante o governo Trump, Michael Benz, quanto ao papel da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) como instrumento geopolítico e de intervenção no processo eleitoral da América Latina e de outros países durante a administração Biden, caso comprovadas, representam a derrocada da intenção originária que lhe conferia legitimidade enquanto agente humanitário, especialmente ao alegar o financiamento e controle do ecossistema informativo desses países, o que dá luz à verve literária (inspiração, vivacidade) do experimentado autor, pois, embora favoreça, in loco, o escrutínio eleitoral do espectro progressista, mantém o jugo (submissão) dos bárbaros da atualidade perante o imperialismo nortista e, por extensão, expõe a fragilidade de uma relação estreita e bicentenária entre EUA e Brasil.

O USAID, foi criada em 1961 sob a administração do Presidente John F. Kennedy, na condição de braço humanitário do governo dos EUA, cujo montante recursal, mundo afora, alcança cifras anuais bilionárias e tem por escopo a mitigação da pobreza, o tratamento de doenças, a resposta frente às catástrofes naturais e a construção e desenvolvimento da democracia implícita pelo seu apoio às organizações não governamentais, meios de comunicação independentes e iniciativas sociais. A referida guarida pecuniária (suporte financeiro) pode ser verificada no financiamento à Organização das Nações Unidas (ONU): em 2024, 42% de toda a ajuda humanitária das Nações Unidas teve origem na agência, o que faz da entidade governamental de ajuda ao desenvolvimento dos EUA a maior doadora individual do mundo (LUCENA, 2025).

Segundo as denúncias, a vicissitude reside no desvirtuamento, não se pode negar que a Usaid direcionou auxílios humanitários, envio de medicamentos e alimentos a áreas atingidas pela miséria, guerra e pelos desastres naturais, porém, simultaneamente, perpetrou iniciativas de cunho identitário, fomentando métodos de controle da informação e da liberdade de expressão, políticas de controle populacional e incentivo à promoção ou legalização do aborto em países pobres.

Em “O Império e os Novos Bárbaros”, Rufin aponta que, sob a justificativa de assistência humanitária ou desenvolvimento, o ocidente redefine constantemente quem são os “bárbaros” e impõe sua presença em regiões estratégicas, mantendo uma relação desigual e tutelar. Se as denúncias de Benz forem comprovadas, isso reforçaria a tese de que a nova forma de imperialismo ocorre não mais pela imposição militar direta, mas pela manipulação sutil da política interna dos países-alvo.

Não obstante o histórico elo entre os países, a suposta atuação da USAID para financiar grupos locais e desestabilizar governos não alinhados com os interesses estratégicos norte-americanos representa um ponto de inflexão no modelo cooperativista, cujo fim deveria ser humanitário e, por seu turno, consubstancia uma parceria institucional insalubre à democracia. Isso dito, não se sabe, ao certo, a profundidade da ventilada relação entre o progressismo e o supracitado órgão americano. Tratar-se-ia de uma peripécia casual, comum à de uma casa de tolerância (bordel)? sê-lo-ia uma correspondência longínqua entre nubentes (noivos)? Ou, de fato, uma aliança duradoura e matrimonial forjada com confiança ao longo dos anos pelos EUA?

Sem mais dilações, indaguemo-nos: 1-O projeto imperialista proposto por Rufin em sua obra pode ser abstraído das entrelinhas dessa discussão? 2-E o quadro geopolítico global? Seria este amargo e, talvez, demagogo?

REFERÊNCIAS

RIBEIRO, Fábio Oliveira. O império e os novos bárbaros: resenha do livro de Jean-Christophe Rufin. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3787, 13 nov. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25672. Acesso em: 6 fev. 2025.

LUCENA, André. O que é a USAID e porque Trump quer destruir a maior agência de assistência internacional do mundo. Carta Capital. 07 jun. 2025. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/mundo/o-que-e-a-usaid-e-porque-trump-quer-destruir-a-a-maior-agencia-de-assistencia-internacional-do-mundo/. Acesso em: 10 fev. 2025.

* Prof. Weslley Danny – Doutor e Mestre, graduado em Filosofia, História, Letras, Biologia e Enfermagem. No que tange o segmento humanístico compila pós-graduações nas seguintes áreas: (ciência política), (filosofia, sociologia e ciências sociais), (ética e filosofia política) e (história e antropologia).