OPINIÃO

Violetas na escuridão

Walber Aguiar*

A força do direito deve superar o direito da força           

                            Rui Barbosa                    

Fazia frio no auditório quando ele apareceu. Figurino simples, música e marmita na mão. Ainda assim, sua carga dramática falou mais alto. Isso porque carregava consigo a cachaça, a incompreensão e a indiferença, química completa para o desencadeamento da violência no lar.

No meio da multidão um grito silencioso. Sem eco, sem resposta, sem importância para uma sociedade machista, consumista e preconceituosa. No silêncio doméstico, apenas “fantasmas” e ressentimentos falavam. E nessa verbalização da ofensa, a dor é inevitável. Dor muda, introspectiva, esmagante. A indiferença partindo em mil pedaços o coração já fragmentado pelo cotidiano sem ficção, sem aventura, sem qualquer motivação existencial para continuar sentindo.

Dagmar Ramalho falou das grades que prendem a esperança, do entorpecimento físico e psicológico que o álcool dissemina na sociedade. Falou de porrada, de prisão, de boletins de ocorrência. Enfatizou a solidão e o sentimento de perda trazidos pela morte. Mas deu a entender que o cidadão, forjado no domicílio da grandeza e da dignidade não precisa bater na companheira para autenticar sua “força” e seu autêntico desejo de ser mau.

Para as vítimas, as terças feiras ainda não se transformaram em domingos de sol. Mesmo assim elas estão ali, fortes e frágeis, ensimesmadas e extrovertidas. Continuam seu percurso diário na escola, no escritório, na geografia do assédio, que não é considerado crime, mas constrangimento ilegal apenas. Pobre lei. Domesticada pelo preconceito imbecil, converteu-se numa espécie de darwinismo social, autenticando aqueles que esmagam colibris com bate-estaca.

Assim, as mulheres, com ou sem “Maria da Penha”, entregam-se a anos, planos e a “príncipes” disfarçados de “monstros”. E enquanto passam panos, a solidão, companheira do medo, dialoga com o desejo de liberdade. Nessa dialética em que a resposta parece não chegar nunca, elas “despetalam” lentamente no “jardim”  que escolheram viver.

Naquele ambiente refrigerado, o intérprete conseguiu transformar a violência doméstica em algo bonito, simples, declamável. Fez brotar flores brancas do asfalto da realidade, vista nas prisões, nos lares desfeitos, nos cemitérios. Falou do perdão e da ofensa, da incredulidade e da descrença, da saudade e do esquecimento. Se toda força bruta é um sintoma de fraqueza, então ele transformou as mulheres em criaturas extremamente fortes. Em caimbés que, mesmo açoitados pelo fogo da morte e da destruição, resistem bravamente.

Tal resistência passa, necessariamente, pela organização, pelo ajuntamento, pela perspectiva de corpo. Desse modo, a dignidade de ser gente configura-se num enorme jardim florido. E mesmo que elas sejam frágeis violetas na noite fria da tragédia, um dia o deserto florescerá, e debaixo de suas unhas sempre será primavera…

Era uma sexta-feira. Dia de lembrar da professora Wanda David Aguiar e de tantas outras que não foram alcançadas por “Maria da Penha”. Mas, sobretudo, dia de entender o poema de Dagmar que, no meio da frieza, nos aqueceu o peito…

*Advogado, poeta, professor de filosofia, Mestre em Letras, historiador e membro da Academia Roraimense de Letras [email protected]