Uma auditoria realizada pela ApexBrasil (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos) no escritório de Miami, nos Estados Unidos, revelou que o ex-diretor geral da unidade, o general Mauro Lourena Cid, utilizou o local para negociar joias e presentes recebidos pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) durante seu mandato.
O relatório, divulgado nesta sexta-feira (12), será encaminhado à Polícia Federal, ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Tribunal de Contas da União (TCU). Este documento faz parte do inquérito que resultou no indiciamento de Bolsonaro e outras 11 pessoas na semana passada, acusados de peculato, lavagem de dinheiro e associação criminosa.
A ApexBrasil (informou que 16 pessoas foram interrogadas pela Comissão Extraordinária, designada em abril deste ano para investigar as irregularidades. Além do uso do escritório para negociar joias e presentes, a comissão destacou a resistência em devolver equipamentos funcionais, o acesso à unidade mesmo após a exoneração e “comportamento desviante” das atividades atribuídas.
“Os resultados apontam a prática de delitos e graves desvios de conduta durante a gestão do general Mauro Lourena Cid à frente do escritório”, afirmou a nota da ApexBrasil, resumindo a apuração a que a Gazeta do Povo teve acesso. A reportagem procurou a defesa do general e aguarda retorno.
Servidores confirmaram informações da PF De acordo com a comissão, “boa parte” das informações levantadas pela Polícia Federal durante a investigação “foram confirmadas e detalhadas por documentos examinados e depoimentos tomados”. Lourena Cid é identificado como o responsável pela negociação das joias do ex-presidente nos Estados Unidos.
A ApexBrasil destaca que Lourena Cid utilizou a estrutura do escritório para “atividades não relacionadas” à sua função de diretor geral, tanto antes quanto depois de sua demissão, ocorrida em 3 de janeiro de 2023.
“Foi possível concluir que, às 10h39 da manhã de 4 de janeiro de 2023, já demitido mas ainda nas dependências do escritório da Apex, ele usou o celular funcional para compartilhar fotos das joias e objetos de arte do acervo atribuído ao ex-presidente”, relata a nota, ressaltando que as imagens foram produzidas pelo celular corporativo da ApexBrasil.
A agência afirma que Lourena Cid resistiu a devolver tanto o celular – que ele continuou utilizando para falar com o filho, Mauro Cid, até 7 de fevereiro de 2023 – quanto o notebook funcional, devolvido em 17 de janeiro. Os dados foram apagados dos dispositivos de forma irregular, já que “deveriam ter sua integridade atestada e seus dados apagados por uma empresa prestadora de serviços de tecnologia contratada pela agência”.
Ainda segundo a ApexBrasil, o general jamais devolveu o passaporte oficial com visto de trabalho vinculado ao órgão, mantendo o crachá de acesso ao prédio até uma semana após a demissão. Ele ainda recebeu uma senha para acesso ao wi-fi em seu e-mail pessoal, mesmo após o bloqueio automático no dia da exoneração, o que pode indicar “algum tipo de apoio ou omissão de funcionários” – mas sem especificar quem o auxiliou.
“Ficou comprovada a presença de Mauro [Lourena] Cid no EA [escritório] semanas após a sua demissão, tempo suficiente para agir conforme seus interesses e afastar qualquer evidência”, concluiu a ApexBrasil.
Lourena Cid recebeu filho e transportador das joias no escritório A Comissão Extraordinária da ApexBrasil apontou também que Lourena Cid recebeu o corretor de imóveis Cristiano Piquet em agosto de 2022, identificado pela PF como responsável por levar e guardar uma mala com joias e esculturas que seriam posteriormente negociadas em casas de leilão nos Estados Unidos.
“Piquet confessou à Polícia Federal que, em janeiro de 2023, transportou uma mala de joias do ex-presidente Jair Bolsonaro de Orlando para Miami, a fim de entregá-la ao general Cid”, diz a ApexBrasil na nota sobre a mala que chegou nos Estados Unidos no avião presidencial que Bolsonaro utilizou para viajar a Orlando no dia 30 de dezembro de 2022, dois dias antes da posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
A auditoria também revelou que o tenente-coronel Mauro Cid esteve no escritório em janeiro de 2023, mesmo após a exoneração do pai, passando algumas horas trancado com ele em sua antiga sala.
A ApexBrasil também aponta que Lourena Cid apresentava um “comportamento desviante” em relação às suas atribuições como diretor do escritório, com “baixo perfil” e “afastamento das atividades de negócios”.
“Jamais fez proposições voltadas à exportação ou captação de investimentos. Não solicitou relatórios, tampouco avaliou resultados. Segundo relatos unânimes, o general aprovava todas as propostas levadas a ele, sem aprofundar conteúdos, sugestões ou reparos”, detalha a nota.
Os relatos coletados pela comissão indicaram que empresários e representantes de empresas que nunca se tornaram clientes da ApexBrasil foram recebidos por ele repetidamente, fora da agenda oficial.
“As apurações apontam ainda que a negligência do general Lourena Cid em suas funções à frente do EA Miami [escritório], com a ausência de instrumentos de controle do trabalho da equipe, de reuniões de avaliação e de relatórios qualitativos, instaurou no local um padrão de desídia e disfuncionalidade”, destaca a ApexBrasil.
A agência também questiona a mudança de “status” do escritório de Miami, que foi transformado em “anexo consular” após negociação do governo com o Departamento de Estado dos EUA, permitindo ao local conceder benefícios e imunidades a diplomatas, como maior facilidade para obtenção de vistos.
Funcionário fantasma
Ainda sob a gestão de Lourena Cid, o escritório foi utilizado para contratar fraudulentamente o médico Ricardo Camarinha, que atendia Bolsonaro, em abril de 2022. Ele foi contratado pela sede da ApexBrasil em Brasília e expatriado “por meio de instrumentos de excepcionalidade (memorando, portaria e carta oferta)”.
“O médico não desenvolvia qualquer atividade profissional ligada ao cargo de assessor, e nem frequentava as dependências do escritório. O fato configura uma contratação fraudulenta”, descreve a agência, classificando-o como “funcionário fantasma”.
A ApexBrasil afirmou à reportagem que interveio no escritório de Miami e que “prossegue na apuração e no exame de desdobramentos, desvios e eventuais irregularidades relacionados ao escritório”. “Novas providências poderão ser tomadas após a continuidade do processo de apuração e responsabilização, inclusive o desligamento de colaboradores”, completou.