Cultura

Xamã Yanomami lança 'A Queda do Céu'

O livro é um manifesto cosmopolítico, um acontecimento importante na literatura brasileira

Na última terça-feira, 1º de setembro, Davi Kopenawa, xamã e líder político dos yanomami, lançou A Queda do Céu, livro escrito em parceria com o antropólogo Bruce Albert.

Kopenawa participou de um bate-papo na Livraria Cultura da avenida Paulista, no Conjunto Nacional, às 19h.

O livro é um manifesto cosmopolítico, um verdadeiro acontecimento na literatura brasileira. Um acontecimento científico e um acontecimento político. Um livro maravilhoso, tanto na qualidade literária, nas descrições e condução do pensamento, quando na profundidade filosófica.

Para os Yanomami, a “floresta está viva, e é daí que vem a sua beleza.” Mas o Branco pensa diferente, e destaco um trecho da crítica de Davi:

“Já os grandes homens dos brancos pensam diferente: “A floresta está aqui sem razão, então podemos estraga-la o quanto quisermos! Ela pertence ao governo!” Contudo, não foram eles que a plantaram e, se a deixarmos nas mãos deles, farão apenas coisas ruins. Vão derrubar suas árvores grandes e vende-las nas cidades. Vão queimar as que sobrarem e sujarão todas as águas. A terra logo ficará nua e ardente. Seu valor de fertilidade irá deixa-la para sempre. Não crescerá mais nada nela e os animais que vinham se alimentar dos frutos de suas árvores também irão embora.”

Outra reflexão sobre a floresta é a epígrafe do livro:

“A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la. Se conseguirem, os reios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar no calor. A terra ressecada ficará vazia e silenciosa. Os espíritos xapiri, que descem das montanhas para brincar na floresta em seus espelhos, fugirão para muito longe. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chama-los e fazê-los dançar para nos proteger. Não serão capazes de espantar as fumaças de epidemias que nos devoram. Não conseguirão mais conter os seres maléficos, que transformarão a floresta num caos. Então morreremos, um atrás do outro, tanto os brancos quanto nós. Todos os xamãs vão acabar morrendo. Quando não houver mais nenhum deles vivo para sustentar o céu, ele vai desabar.”

A Queda do Céu resulta de uma parceria de 20 anos entre os dois autores (que se conhecem desde 1978), e partiu de uma iniciativa de Kopenawa, que queria suas palavras fossem levadas para longe. Um grito de Davi para que sua voz fosse ouvida além de um bang-bang velho oeste que ameaça os yanomami – Roraima e controlada por políticos do nível de Jucá (que Davi já denunciou que este senador o ameaça de morte) que incentivam a invasão do território yanomami por garimpeiros e grileiros de terras. Assim explica Bruce Albert, no próprio livro, a origem do trabalho:

“Num momento crítico de sua vida e da existência de seu povo, Davi Kopenawa resolveu, em função do meu envolvimento intelectual e político junto aos Yanomami, confiar-me suas palavras. Pediu-me que as pusesse por escrito para que encontrassem um caminho e um público longe da floresta. Desejava desse modo não apenas denunciar as ameaças que sofrem os Yanomami e a Amazônia, mas também, como xamã, lançar um apelo contra o perigo que a voracidade desenfreada do “Povo da Mercadoria” faz pesar sobre o futuro do mundo humano e não-humano”

Davi-Yanomami Kopenawa é uma das principais lidernaças indígenas brasileiras.

Com 720 páginas, foi escrito originalmente em francês, a partir de pesquisas e anotações feitas em uma língua yanomami.

A obra foi impecavelmente traduzida por Beatriz Perrone Moisés, e a versão em português realizada com apoio do Instituto Socioambiental e lançada pela Cia das Letras numa bela edição.

Além de ser mais bonita do que o original em francês, publicada na prestigiosa coleção Terre Humaine (mesma que publicou Tristes Trópicos, de Lévy-Strauss), conta ainda com um extraordinário prefácio de Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo que é a referência do pensamento atual brasileiro. Viveiros de Castro nos ajuda a ter uma dimensão da importância do livro: “Este livro é sobre o Brasil”, diz ele, “mas de um modo muito especial, é um livro sobre nós, dirigido a nós, os brasileiros que não se consideram índios”

Em inglês, lançado ano passado, o livro foi publicado pela não menos prestigiosa Harvard University Press. É de se esperar que, após um sucesso internacional, o livro chegue arrebentando – como deveria, e em muitos sentidos – aqui no Brasil

Apesar de estar circundado de antropólogos, o livro não se destina, a meu ver, apenas à comunidade da antropologia. Bruce Albert vem da tradição estruturalista de Lévy-Strauss, foi aluno do não menos brilhante Patrick Menget, na Universidade de Nanterre – Paris X, e sempre foi mais engajado em lutar ao lado dos Yanomami do que em construir uma carreira pessoal.

É um livro muito maior do que poderia ficar restrito a uma comunidade científica. É um divisor de águas na literatura brasileira e um divisor de águas, profundo, no pensamento político brasileiro.

Uma obra atual

No último sábado, foi assassinado por milícias de fazendeiros Simeão Vilhalva, liderança kaiowa-guarani no Mato grosso do Sul, na Terra Indígena Ñande Rú Marangatú. (homologada, mas trancada irresponsavelmente no Supremo Tribunal Federal)

Semana passada (terça-feira dia 26), foi assassinado o ambientalista popular Raimundo Santos Rodrigues, conselheiro da Reserva Biológica Gurupi, no Maranhão. Ele denunciava madeireiros ilegais.

Em um Brasil cada vez mais destruidor e violento, desde a violência brutal nas áreas de “fronteira”, à violência política em Brasília, um país que cada vez mais segue o lema de “quem vier depois, que se vire”, é urgente ler Kopenawa – e que suas palavras sejam não apenas lida longe, mas que ajude a formar novos aliados para evitar que o céu caia sobre a terra e que os Brancos matem o planeta.

Um outro trecho que acho particularmente brilhante do pensamento de Kopenawa, e que me inspira em diversas reflexões (também destacado no prefácio de Viveiros de Castro):

Na floresta, a ecologia somos nós, os humanos. Mas são também, tanto quanto nós, os xapiri, os animais, as árvores, os rios, os peixes, o céu, a chuva, o vento e o sol! É tudo o que veio à existência na floresta, longe dos brancos; tudo o que ainda não tem cerca. (…) Somos habitantes da floresta. Nascemos no centro da ecologia e lá crescemos.

Fonte: Carta Capital