Cotidiano

Sem poder atuar, médica que interrompeu Bolsonaro vende bolo para sustento

Roberta Kelly disse que desde dezembro de 2020 encontrou alternativas para sobreviver, como a venda de bolos. Em outras épocas sem atuar, disse que chegou a vender espetinhos de churrasco

A médica roraimense Roberta Kelly Scaramm Menezes é a mulher que interrompeu o discurso de Jair Bolsonaro (sem partido). A sequência da fala dela, com críticas ao Revalida (Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicas Expedidos por Instituição de Educação Superior Estrangeira), foi cortada pelo presidente, que indicou que mudanças na avaliação da prova são estudadas pelo Ministério da Educação.

Formada em Medicina pela Universidade Experimental de Los Llanos Romulo Gallegos, da Venezuela, a médica de 40 anos está sem atuar na área desde dezembro de 2020, quando acabou seu contrato temporário com a Prefeitura de Boa Vista.

Ela disse à FolhaBV que, de lá para cá, encontrou alternativas para sobreviver, como a venda de bolos. Em outras épocas sem atuar, disse que chegou a vender espetinhos de churrasco. A médica critica a avaliação do Revalida (composto por 100 questões objetivas e 50 discursivas) que, segundo Bolsonaro, apenas 5% dos candidatos são aprovados, sem considerar a experiência na área.

“Desde que o Bolsonaro entrou, os médicos que trabalharam no exterior não foram chamados. Eu trabalhei no Mais Médicos por quatro anos […]. Tenho capacidade suficiente para trabalhar na atenção básica, trabalhar no posto de saúde, fiz vários cursos, cursos de especialização, sou formada em Saúde da Família, tenho especialização em Saúde da Família, eu tenho tudo isso, mas termina meu contrato do Mais Médicos, deixo de ser médica. Eu queria que ele [Bolsonaro] pelo menos avaliasse essa questão. […] Aí veio uma prova, passei e os quatro anos que tive trabalhando não contam? Eles vão avaliar a minha capacidade numa prova. Isso não é justo”, questionou.


Bolo vendido por Roberta Kelly durante tempo sem atuar como médica (Foto: Divulgação)

“Será que somos tão incapazes assim de não conseguir passar na prova? […] Que país é este que você não consegue uma oportunidade para realizar o seu sonho no seu país,”, indagou.

Roberta Kelly saiu de Boa Vista para estudar Medicina na Venezuela, entre 2007 e 2013, época em que, segundo ela, inicialmente deixou marido e a filha ainda pequena. Eles, depois se juntariam a ela, em San Juan de Los Morros, cidade da universidade onde estudava. “Tivemos que dormir no chão, tudo em busca do meu sonho”, lembrou.

Foi no país vizinho que ela começou a atuar profissionalmente, de 2013 a 2014, ano em que voltou ao Brasil. Em seu país, atuou pelo Mais Médicos de 2016 a 2019 e, com o dinheiro que ganhou, comprou uma caçamba. É do veículo que ela e o marido sustentam a família, com a venda de materiais de construção, como areia, barro e seixo.

Depois de seis tentativas, Roberta Kelly disse ter sido aprovada na primeira fase do Revalida 2021. “Agora em dezembro vai ser a prova prática. Em nome de Jesus, eu vou passar. Estou lutando pela causa dos meus colegas, porque eu sei o que é isso”, pontuou.


A médica em atuação (Foto: Arquivo pessoal)

Membro da Assembleia de Deus desde 2010 e médica voluntária da igreja, Roberta Kelly participou do culto de comemoração dos 106 anos da igreja em Roraima nessa terça-feira (26), mas disse que não tinha intenção de interromper o discurso do presidente.

“O pessoal lá: ‘vai, vai, vai, fala’. Estavam me motivando. Aí criei coragem e levantei, porque a gente tem que lutar pela nossa causa, porque a Bíblia fala que a fé sem obras é morta. Não adianta eu ter fé, que Deus vai me abençoar, sendo que eu não reajo, não faço, não vou atrás”, disse.


Roberta Kelly se levantou para interromper o presidente Jair Bolsonaro (Foto: Reprodução/AD Roraima)

Roberta Kelly revelou ter entregue documentos a um assessor de Jair Bolsonaro e ao presidente da Assembleia de Deus em Roraima, pastor Isamar Ramalho, tendo como destino o presidente. Os papéis relatavam sua história pessoal e leis de revalidação simplificada de diplomas de Medicina, como ocorre na Universidade Estadual do Maranhão, por exemplo. A médica disse ter articulado a implantação desse tipo de processo na Universidade Estadual de Roraima (Uerr), e diz aguardar a formação de uma turma na instituição.